Cultura

Aquele setembro

Um mês que me persegue, que não sai da minha memória

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Quando aquele setembro chegou era um sábado de muito calor em Belo Horizonte. Eu começava a separar minhas roupas, minhas coisas, colocar tudo em cima da cama para depois arrumar dentro de uma enorme mala Ika forrada de cetim. Eram roupas de frio. Blusas, meias de lã, luvas, gorros. Eu estava indo embora, quiçá para nunca mais voltar. 

Vivíamos sob o impacto da morte do estudante de Geologia da USP, Alexandre Vanucci, torturado e morto nos porões da ditadura. Mas os jornais informavam que ele havia sido vítima de traumatismo craniano, depois de ser atropelado por um caminhão.

Engolíamos sapos naquele setembro que começava tenso no Chile de Salvador Allende. Caminhoneiros parados, o país parado, uma panela de pressão. E a classe média, aflita para se ver livre do socialismo, gritava Fora Allende nas ruas e avenidas.   

Minha mala já estava praticamente pronta no dia 11, quando veio o golpe. Faltava apenas uma pasta de cartolina onde guardava todos os meus documentos que levaria para a distante e desconhecida Paris. Meu currículo traduzido, as cadeiras que fiz na Faculdade de Filosofia devidamente detalhadas, meu passaporte que tinha uma capa verde e dura onde, na primeira página, um carimbo dizia: Não é válido para Cuba

A Arena oficializava a candidatura do general Ernesto Geisel para o posto de presidente da República. Era o quarto militar a ocupar o cargo por via indireta, desde o golpe. A notícia me deprimia e me enchia de desilusão. Queria mesmo era pegar o primeiro avião com destino a qualquer lugar do mundo que não fosse essa pátria amada idolatrada salve salve. 

Antes de trancar a mala com um cadeado Papaiz comprado no Armazém do Chaim, ainda encontrei espaço nos cantinhos para enfiar algumas fitas K-7 com as música que gostava e que queria ouvir onde quer que eu estivesse. Fagner cantando O último pau de Arara, Gal cantando Índia, Walter Franco cantando Me deixe mudo, Luiz Gonzaga cantando Asa Branca e Caetano cantando Vou-me embora pro sertão/Eu aqui não me dou bem/Ô viola, meu bem/ Viola!

Bombas caíram sob o La Moneda, tanques ocuparam as ruas de Santiago, opositores foram levados ao Estádio Nacional para o juízo final. Torturados e mortos, guerrilheiros eram amarrados em enormes pedras e jogados ao mar. 

Uma nuvem escura pairou sob a América do Sul. O avião da Varig levantou voo deixando para trás um setembro sombrio que nunca saiu da minha memória. 

Nos primeiros dias longe daqui, passava as manhãs no subsolo da Livraria Joie de Lire, no coração do Quartier Latin, o QG da resistência. Os fanzines chegavam diariamente de todos os cantos da América do Sul trazendo péssimas notícias das estrelas. A imagem de Augusto Pinochet, nas primeiras páginas dos jornais, óculos escuros e braços cruzados era a mais perfeita tradução de uma repressão cruel e assassina.   

E eu agora, longe de tudo, cantava London London pelas ruas frias de Paris, como se estive na terra dos Beatles procurando discos voadores pelos céus. 

Recitava poemas de Pablo Neruda, morto poucos dias depois do golpe, de susto, de bala ou vício. 

Tira-me o pão, se quiseres,

tira-me o ar, mas não

me tires o teu riso

O tempo passou e minha promessa de somente ir ao Chile após a morte do general foi cumprida. Um dia, não faz muito tempo, fotografei o La Moneda de todos os ângulos, como se fizesse uma autopsia do meu sofrimento, daquele setembro de 1973. Não havia restos de sangue, cheiro de enxofre no ar, nem gritos parados no ar. Mas um silêncio contagiante.   

No primeiro dia de 2017, entrei na Livraria Altaïr, na Gran Via de les Corts Catalanes número 6, em Barcelona, e minha filha caçula veio logo com um livro nas mãos que, segundo ela, era a minha cara. 

– Pai, uma historia em quadrinhos sobre o golpe no Chile. 

Vencidos pero Vivos, de Maximilien Le Roy e Loïc Locatelli Kournwsky, está aqui em cima da minha escrivaninha há mais de dez dias. São 118 páginas, contando passo a passo a tragédia daquele inesquecível setembro. 

Lido, ele vai para um lugar nobre da estante, repousar ao lado de Galeano, de Puig, de Fuentes, de Marquéz, de Sábato e de Pablo. Será mais um livro na estante. E como dói.

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