Cultura

“Aquarius” e o dever da resistência

A luta de Clara, personagem de Sonia Braga, não é por um apartamento. É contra padrões. (Alerta de spoiler: este é um texto para quem já viu o filme)

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Enfim fui assistir Aquarius, filme de Kleber Mendonça Filho que, segundo me diziam os amigos preocupados com a imagem do País lá fora, vestiu a Sonia Braga com uma boina à la Che Guevara e saiu empunhando a foice e o martelo dos governos bolivarianos em suas apresentações pelo mundo.

O contexto político de idiotia acelerada isolou o filme nas trincheiras do pensamento binário, o que é uma pena: o filme fala justamente (e sutilmente) sobre sutilezas, e nelas residem as virtudes e os perigos da história levada à tela.

Em contrapartida, esse contexto conferiu ao filme uma força quase inevitável entre a sua realização e a sua divulgação. Basta lembrar que a trama aborda o modus operandi da expansão imobiliária em um momento em que o modus operandi das grandes empreiteiras é desnudado por operações policiais a detonarem crises políticas.

Mas não é exatamente a “denúncia” desse universo o que faz de Aquarius um retrato mais do que bem enquadrado das relações contemporâneas.

Observado de longe, o conflito abordado ali parece um dilema meramente pessoal: uma jornalista aposentada que se nega a vender seu apartamento à beira da praia de Boa Viagem, no Recife, para uma incorporadora que pretende transformar o terreno em um grande empreendimento.

Em algum momento da história, a do lado de cá da tela, a obra se tornou a personagem de Sonia Braga e a personagem de Sonia Braga se tornou a alegoria da própria obra. Como ela, o filme em nenhum momento foi combatido como antes eram combatidos os filmes ou livros incômodos. Ninguém mais queima livros ou proíbe exibições hoje em dia.

Como na trama, os recados são sutis e operam por outros meios: a classificação indicativa, a omissão da indicação, os ataques retóricos de sabujos de toda ordem. Temos assim a forma mais atualizada de se queimar uma película: colocá-la no meio de um tiroteio amesquinhado.

Aparentemente o maior pecado de seu diretor foi se expressar em público sobre o que considerou um golpe em curso no Brasil. Como ele, o maior pecado da protagonista é falar, e o incômodo de sua fala não é rebatido na bala ou na censura, como num conflito clássico e aberto entre o lado mais fraco e o mais forte, mas pelo constrangimento. Pela sutileza, enfim: quando tudo o que se diz é reduzido pela desautorização do direito de falar.

Curiosamente, no dia em que soube que o filme ficou de fora da disputa pelo Oscar (obviamente não vi o escolhido, mas para desbancar algo do calibre de Aquarius espera-se que se trate de um novo Cidadão Kane), minha sessão foi interrompida ao meio por um problema no equipamento em um shopping de Campinas.

Na meia hora em que ficamos no breu até alguém avisar que poderíamos pular para a sessão seguinte, testemunhei debates acalorados atrás de mim sobre como deveria acabar o filme: se Clara, a protagonista, deveria ou não largar a mão da teimosia e vender o apartamento.

Pois é exatamente isso o que (não) trata o filme. O conflito de Clara não é por um apartamento. É um conflito de quem se nega a se integrar a um padrão (de gênero, de velhice, de estar na cidade, enfim) como algo inevitável.

De novo, as sutilezas. O filme sobre o qual ouvimos tantos berros (se você gostou, é petralha; se não gostou, é coxinha) não berra (quase) em momento algum.

Desde as cenas iniciais, mostra que o conflito não está onde parece estar. Esse deslocamento de expectativa pode ser observado em pelo menos três piscadelas do diretor. Uma delas ocorre logo que a jovem Clara é apresentada: um carro estaciona na praia à noite como se seus ocupantes estivessem prestes a praticar algum tipo de transgressão.

Quando a câmera se aproxima, vemos que aquele é, na verdade, um programa de família. A maior “subversão” da personagem é colocar no volume máximo uma fita do Queen, enquanto seu irmão joga bola na praia com as crianças.

Na volta, vemos seu companheiro, aparentemente contrariado com o atraso, observá-la chegar a uma festa naquele que seria o seu apartamento. Imaginamos que uma cena vai se desenrolar ali, mas a expectativa da briga não se concretiza.

Pouco depois, quando ela, já nos anos 2010, encontra amigos numa praça para praticar um exercício de risoterapia, alguns meninos negros surgem na cena como se invadissem um espaço indevido. “Vão assaltar todo mundo”, pensamos, já condicionados a visualizar um velho filme sobre a mesma violência urbana. Eles, então, se deitam com o grupo de Clara e passam a participar do exercício.

Estamos olhando para o lado errado, diz a sombra de um edifício de alto padrão que, este sim, invade a cena e cobre a praia, um espaço público, por uma nuvem da estrutura privada.

Este condicionamento do olhar encobre o filme por todos os lados, e diz mais sobre quem vê do que sobre quem mostra.

Quando este condicionamento é quebrado, percebemos que este não é um filme do capital versus trabalho – Clara é também proprietária e também, à sua maneira (voltaremos ao tema) explora e reproduz hierarquias em seu círculo de relacionamento.

A briga dela é outra: é com os destinos condicionados. Por isso a quebra de expectativas, mais do que o conflito imobiliário, me parece o elemento central no filme.

Na primeira parte, retratada nos anos 1980, ela, o marido e os filhos prestam uma homenagem a uma tia que acaba de completar 70 anos. Enquanto as crianças leem para ela uma mensagem, lembrado de como ela foi presa e perseguida pela ditadura e, contrariando a sua época, se formou e trabalhou em uma época em que poucas mulheres estudavam ou trabalhavam, todos na casa e na plateia ficam esperando o momento em que aquela senhora aparentemente bem comportada irá se derramar em lágrimas.

A tia, porém, não está disposta a vestir o figurino que se espera de uma senhora de 70 anos. Em vez disso, ela olha para uma cômoda da sala e relembra o dia em que praticou sexo oral ali. Quando é sua vez de falar, ela não faz qualquer concessão ao figurino: provoca um certo clima ao homenagear o companheiro morto com quem jamais se casou – ele era seu amante.

A homenagem logo se estende a Clara. Descobrimos, então, que ela superou um câncer e todos celebram a sua recuperação. Naquele brinde, todos parecem celebrar um novo momento histórico: o pior já passou.

“Todo mundo sabe que 79 não foi um ano fácil”, diz o marido.

Consciente ou não, a referência ao ano em que foi promulgada a Anistia, que deu liberdade a presos políticos e exilados, mas também premiou torturadores e criminosos de Estado cujos crimes não só jamais foram punidos como tiveram continuidade, serve para preencher a elipse entre o momento de distensão e o período democrático em que se passa a história – este que diretor e equipe disseram em Cannes estar em risco.

Clara, mais ou menos como aqueles que celebravam o fim da ditadura, dormia tranquila em sua rede quando os donos da empreiteira rasgam a harmonia da cena. Eles já não vestem coturno nem falam grosso. Pelo contrário: são solícitos, elegantes, pedem licença e dizem estar abertos ao diálogo.

Esse diálogo, entretanto, é fajuto. Ele não se presta a um exercício de teses e antíteses e espaço para a vontade alheia, mas a um lógica da pregação pelo constrangimento. Cerca, rodeia e asfixia. A diferença com um trator é uma questão de velocidade.

Clara luta praticamente sozinha com este trator. É a única moradora remanescente de um prédio antigo cujos antigos proprietários se dobraram às promessas da empreiteira de fazer daquele terreno valorizado uma mina de dinheiro.

Clara é uma pedra de resistência no caminho das máquinas e precisa ser eliminada. Como?

A exemplo da tia homenageada nas cenas iniciais, a protagonista passa o filme desenhando o figurino que se espera dela: desobedece o bombeiro que a orienta a nadar até a cintura, bebe, vai ao baile, tem uma vida sexual ativa. É viúva, mas não vive em luto pelo marido; é mãe, mas não estraçalhou a própria subjetividade em nome de uma ideia maternidade; envelheceu, mas não está confinada a um presságio de morte. Clara é a quebra da ideia de que, a certa idade, só se pode agir no mundo se for para tricotar ou manusear o controle remoto da TV.

O que está em jogo para ela não é um espaço, mas uma forma de vida: uma vida em que os vínculos humanos importam. E, para ela, uma vida que aceita passivamente um padrão determinado (simbolizado num apartamento valioso e seguro na mesma proporção em que confina e reduz a ideia de circulação) é uma vida empobrecida de experiências.

E que tipo de vínculos estamos criando numa época em que vemos e ouvimos o que não podemos tocar? É o que a personagem tenta explicar a uma jovem jornalista que pergunta por que ela faz questão de manter tantos discos num momento em que as todas as músicas do mundo parecem caber no bolso.

É quando percebemos que a melancolia relacionada à impotência de Clara, se há, não está na incapacidade de se abrir ao mundo novo e a novas linguagens. Está em não conseguir ser ouvida – o que se resume no título estúpido da reportagem que ignora o que ela realmente disse.

Essa é a violência de que trata o filme: a violência de um padrão (habitacional, decerto, mas também de experiências) que se impõe e destrói subjetividades e vínculos, e não necessariamente a história que nos contam os objetos impregnados de vivências e que nos servem de dispositivos e aparadores das memórias.

Clara, ao contrário do que todos tentam dizer a ela, não é uma figura antiquada num mundo que mudou. Ela acha graça, e de certa maneira estranha sem se opor, ao ver como os relacionamentos e afetos (alguns deles detonados por uma simples música, na linguagem que for) se adaptam a novas formas de se comunicar, pensar e sentir. Mas relaciona a experiência de estar viva, como diz a um dos filhos, à ideia do toque e do contato, algo que a realidade virtual não consegue dar conta.

De novo a quebra de expectativas: quando, sem querer, ela flagra, uma vez nos anos 1980 e outra nos dias atuais, os mais jovens se pegando, ela não se horroriza nem censura (e por que deveria?).

“Você sabe o que é saber que você não está louca quando todo mundo diz que você enlouqueceu? É isso o que enlouquece”, diz, a certa altura, a personagem à filha, com quem mantém uma relação conflituosa justamente por ver nela uma sensibilidade afogada pelo senso comum. Este senso comum despreza e nivela por baixo a experiência humana à medida que transforma o mundo em um sistema de pesos cujos contrapesos têm uma única medida: o quanto se ganha ou lucra.

Essa insensibilidade de quem olha o prédio (ou a decadência do prédio) e não os vínculos humanos criados em torno dele não está só no empreiteiro esfomeado, mas também nas pessoas mais próximas a ela – sobretudo a filha.

Mas a consciência de estar vivo é a consciência de viver sob a experiência da perda (da força, da vitalidade, do tempo, mas também dos entes). E a única forma de não morrer (ou melhor: não viver morrendo) é não deixar que a vida e as possibilidades de encontro se banalizem. Aqui a abordagem do conflito entre espaço público (ao menos o que pode ser acessado com chinelos como a extensão da própria morada) e as gaiolas de vidraças e ar condicionado é tanto uma metáfora quanto uma urgência. Lembramos do movimento Ocupe Estelita, a alguns quilômetros daquela praia, mas lembramos também dos sujeitos eliminados do jogo, pela coerção física ou psicológica, quando, no pico da lucidez, ousaram dizer que o mundo caduca quando banaliza a vida – isso sim, motivo de horror para a personagem, que tenta conversar com os mortos quando até os mortos são resumidos a ossos.

Aquarius, de certa forma, mostra como a cidade que se expande é a mesma atropela e desumaniza – a tal ponto que o lamento dedicado ao filho da empregada vitimado por essa mesma cidade é um lamento confuso ente o protocolo e a indiferença. “É foda”, dizemos (todos) antes de seguir a vida disfarçando as nossas desarmonias com o que nos sobra, na base, de paternalismo.

Num mundo de hierarquias tão cristalizadas quanto sutis, Clara demonstra que estar viva é resistir, e resistir é lembrar, pela fala, que está viva, ainda que o mundo diga que isso é loucura.

Reduzido, por certo jornalismo obtuso, a uma panfletagem que não faz, Aquarius merecia um contexto político melhor, menos radicalizado e menos idiotizado para ser compreendido como é: uma abordagem profunda (e sutil) do emaranhado das nossas violências. Ao mesmo tempo, justamente por esse contexto político que resume emaranhados a um briga de torcida, há muito tempo a mensagem de resistência que tenta abordar não era tão necessário como agora.

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