Cultura
Aos 97 anos, a pianista Ruth Slenczynska lança um novo álbum
As gravações de My Life in Music são uma aula de toque e de imaginação interpretativa


Uma pianista que estudou com alguns dos maiores nomes da música, que tocou a quatro mãos com o presidente Harry Truman, que se apresentou na posse de John F. Kennedy e que Ronald Reagan reconheceu como a primeira mulher norte-americana a comemorar os 50 anos de carreira de concertista.
Essa mulher, Ruth Slenczynska, tem hoje 97 anos e é a última aluna sobrevivente do célebre compositor Sergei Rachmaninoff. Ela lançou, este mês, um novo álbum, intitulado My Life In Music, pela prestigiosa gravadora Decca.
Embora as credenciais de Ruth e sua idade sejam, naturalmente, exploradas pelo selo, esse não é o aspecto mais interessante e surpreendente da gravação. A qualidade musical e instrumental não deixa antever, em nenhum momento, aquela que seria uma mais do que compreensível falta de agilidade ou de domínio técnico de Ruth. Ela, ao contrário, nos oferece uma aula de toque, de articulação e de imaginação interpretativa.
Nascida na Califórnia, nos Estados Unidos, filha de um violinista, que era diretor do Conservatório de Varsóvia, Ruth teve no pai uma figura contraditória. Se, de um lado, ele lhe forneceu os meios para estudar nas melhores escolas e com os melhores professores, do outro lado, a obrigava a estudar, ainda criança, por nove horas, todo santo dia.
Em seu livro Forbidden Childhood (Infância Proibida), publicado pela primeira vez em 1957, ela conta como sua vida foi se tornando um inferno. A pressão em torno da música levou-a a abandonar os palcos aos 15 anos, e parar de falar com seu pai. Ela matriculou-se na faculdade de Psicologia, onde conheceu um colega com quem fugiu.
Alguns dados de sua biografia são coincidentes com os da relação entre Mozart e seu pai, Leopold. Isso nos leva a pensar no quão difícil deve ser manter o equilíbrio em uma situação na qual uma criança vira a estrela da família, atraindo as atenções dos empresários, da mídia e dos críticos. Para nossa sorte, Ruth, em 1951, aos 26 anos, voltou aos palcos, e nunca mais parou de deliciar as plateias.
No breve clipe de gravação do novo álbum, com uma contagiosa simpatia, Ruth nos fala sobre como ela considera a música uma forma de contar histórias e diz que seu principal objetivo é sempre “falar” ao público.
Apesar de ter começado a carreira em uma época na qual os vídeos não eram nada corriqueiros, a imagem de Ruth foi fartamente registrada. Entre a documentação disponível na internet, há um vídeo de 1930, em que se pode ouvi-la, aos 5 anos, interpretando um Minueto de Beethoven, apresentado por ela mesma.
Em outro vídeo, de 1963, ela relembra o encontro com Sergei Rachmaninoff, a quem teve de substituir em um recital, em Los Angeles, quando tinha apenas 9 anos. Ruth manteve o programa intacto e despertou o interesse e a admiração de Rachmaninoff, que a convidou para ir visitá-lo no Hotel Majestic de Paris. Viriam depois frequentes sessões de chá da tarde, que o pianista russo preferia às aulas que devia dar para Ruth.
No mesmo vídeo, Ruth Slenczynska toca dois prelúdios de Rachmaninoff e, como no álbum recém-lançado, podemos perceber uma característica que claramente nos conduz aos grandes exemplos interpretativos de seu criador.
Ruth, exatamente como seu mestre, não se deixa levar por sentimentalismos fáceis, perigo bastante comum ao abordar a envolvente e generosa música de Rachmaninoff. Ela nos oferece uma leitura madura, simples e direta, que nos permite apreciar a genialidade da composição em vez de ter o foco desviado para o intérprete e para o seu ego – é vasto o repertório de expressões faciais dos pianistas tocando Rachmaninoff.
No amplo arco temporal da carreira de Ruth, é possível saltar do encontro com Rachmaninoff para os nossos tempos pandêmicos. Em um vídeo recente, de 2021, vemos a simpática e fascinante Ruth, aos 96 anos, em um recital inteiro dedicado a Chopin.
Na alternância entre falas cheias de anedotas e o som do piano, o recital nos confirma aquilo que se nota no álbum: nada mostra falhas de controle nessa maravilhosa força da natureza. E, no meio desse recital, mais uma surpresa: apesar de ele ser inteiramente dedicado a Chopin, Ruth inclui no repertório o Nocturne de Samuel Barber.
E assim descobrimos que Ruth teve o privilégio de escutar o famoso Adagio para cordas do compositor norte-americano, antes de ele ter sido finalizado e ganhar sua imensa fama, seja nas salas de concerto seja no cinema, nas inesquecíveis cenas de Platoon, de Oliver Stone.
Em meio a essa vida repleta de surpresas e grandes feitos, Ruth Slenczynska nos oferece agora mais este álbum. E se ele merece ser falado é porque, para além de seu lugar como documento histórico e como episódio curioso, também é um verdadeiro tesouro musical.
Como antecipa o próprio título, My Life In Music, a proposta interpretativa chega aos nossos sentidos após ter sido moldada ao longo de uma vida rica e aventurosa, vivida ao lado de grandes nomes da música, como Alfred Cortot, Arthur Schnabel, Egon Petri, Josef Hofmann e, naturalmente, Sergei Rachmaninoff. São figuras lendárias da história da interpretação que, hoje, se comunicam conosco por meio do corpo e da mente de Ruth Slenczynska, uma jovem estrela de 97 anos. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1202 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “De prodígio a lenda viva”
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