Cultura

Antes feroz ao sistema, o RAP ressalta o amor e o zelo da população negra

Pesquisadora Daniela Vieira dos Santos fala das mudanças do gênero porta-voz das desigualdades sociais e raciais desde os anos 1990

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Com objetivo inicial de compreender as mudanças simbólicas e materiais do novo lugar social do RAP, sobretudo a partir de 2010, Daniela Vieira dos Santos tem observado em sua pesquisa a expansão do gênero musical para além da periferia.

Daniela Vieira também mantém desde março, com os pesquisadores Tiago Bosi, Lara Tannus e Bruno Baronetti, o canal Na Ponta do Disco, no Instagram, que discute com outros conhecedores de música álbuns que fizeram história no país, num trabalho didático.

A inserção do RAP no mainstream e, igualmente, a ampliação da audiência, está inserida numa conjuntura social, político e econômico a partir dos anos 2000, segundo Daniela Vieira: “E, junto a isso, a ampliação das pautas antirracistas e o interesse cada vez maior de alguns setores em ouvir artistas negros e as suas narrativas”.

As pesquisas dela se sustentam historicamente por essas mudanças. “Ele também se misturou a outros gêneros musicais”, ressalta. “As narrativas e as parcerias que os rappers têm construído estão diferentes. Hoje, com as tecnologias digitais, há maiores possibilidades de produção e circulação, e também o sucesso das redes sociais amplia a recepção das canções”.

Os Racionais MC’s, símbolo da inserção do RAP no país, ainda nos anos 1990, teve no começo de carreira um discurso antissistema, mas a pesquisadora questiona se eles não gostariam de ter avançado com sua música a outras classes sociais.

“São, acima de tudo, artistas e querem ser ouvidos por um número significativo de pessoas, querem status, reconhecimento”, diz. Com aversão a participar de programas de televisão de canal aberto, Daniela Vieira lembra que eles tocavam nas rádios, estavam na MTV, e ocuparam uma espécie de nicho alternativo de mercado, mas aos poucos foram entrando na classe média branca.

“Ao contrário dos rappers de meados dos anos 2000, os Racionais na década de 1990 não tinham uma orientação ao gerenciamento dos seus recursos tal como hoje”.

É fato que a web ajudou muito o RAP a atingir outros públicos. “A internet e todos os recursos da tecnologia digital foram fundamentais para compreender tanto a diversidade de público, quanto abriu maiores possibilidades aos rappers para investirem em suas carreiras”.

Comenta ela que os rappers dos anos 1990 tinham dificuldades para lançar um disco de forma independente e também para circularem as suas músicas. “Como se sabe, a popularização da internet fez com que clipes e músicas pudessem ser produzidos em casa, sem a dependência das gravadoras ou até mesmo de um estúdio. O início da carreira de Emicida ocorreu justamente devido às possibilidades advindas com essas novas tecnologias”.

Mas ela ressalta que as tecnologias apenas trouxeram base concreta a uma experiência que os rappers já tinham.

Resistência

Muito se fala do papel do RAP como ação de resistência ao establishment. Daniela Vieira vê a questão em dois sentidos.

“Estamos passando por um processo de transformações objetivas. Se os Racionais nos anos 1990 podiam ser lidos como forma de resistência às inúmeras violências a que os negros e negras são submetidos, hoje, muitos rappers estão expressando o seu revide às desigualdades sociais e raciais materializando em amor, nas possibilidades de mulheres e homens negros também poderem se amar e serem amados”.

Nesse aspecto, a narrativa tem caminhado fortemente “para a direção do autocuidado da população negra”. A pesquisadora cita o último álbum de Emicida, o excelente Amarelo (2019), como materialização dessa nova forma de faze RAP.

O gênero não seria apenas narrativa de problemas sociais, mas de falar de amor. Outros artistas que cita que seguiram esse caminho do RAP de forma clara é Criolo, onde seu trabalho apresenta diversificadas referências musicais, e Rincon Sapiência, que busca uma sensibilidade negra na composição.

“O revide, nesse sentido, formaliza-se no afrontamento de reivindicar, por meio da música, formas livres de existência, não essencializadas ou romantizadas do que se espera de um artista negro de RAP. Acho importante lembrar do disco solo de mano Brown, o Boggie Naipe (2015), que também fala de amor, retomando os bailes blacks”.

Porém, ela coloca em dúvida se o funk não está ocupando o espaço que fora do RAP antes, como música mais ouvida hoje na periferia.

Pesquisa

Daniela Vieira começou a estudar o RAP paulistano em 2015. De acordo com ela, a pesquisa desde então não parou de crescer em função da dinâmica do gênero. “Meu interesse está em perceber a ampliação do RAP. Almejo demonstrar a incursão do gênero em espaços legitimados e não mais circunscritos à cultura periférica”.

Os primeiros exercícios de seu trabalho foi o de caracterizar as muitas transformações do RAP, a partir de meados dos anos 2000, com o impacto das tecnologias digitais, mudança no gerenciamento das carreiras artísticas, ampliação da legitimidade cultural, status dos artistas, internacionalização do RAP brasileiro, ampliação do conceito para além de um gênero musical, protagonismo feminino e LGBTQI+ e diversificação de público.

“Se hoje o rap apresenta um novo lugar social e simbólico dadas as suas transformações estético-ideológicas e também àquelas relacionadas com o seu modo de produção, circulação e recepção, mudanças importantes já podiam ser observadas desde a sua tímida e conflituosa inserção na indústria cultural, sobretudo na década de 1990”, finaliza.

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