Cultura

Antes que perca a graça

Os amantes de uma noite só se reencontraram após dez anos e agora estão casados. Que pena

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A história é mais ou menos assim: um americano de cavanhaque e franja repara na francesinha do assento ao lado e resolve puxar papo no vagão. Eles descobrem que têm mais em comum do que o trajeto e decidem interromper a viagem. Descem na estação seguinte, em Viena, para se conhecer melhor. Enquanto caminham, trocam impressões sobre a vida, compartilham os segredos mais bem guardados, falam sobre futuro e passado e, pouco depois, quando é hora de dizer tchau e voltar cada um para a sua vida, descobrem que estão apaixonados. Antes, fazem uma promessa: vão se encontrar no mesmo lugar em um futuro breve.

Fim, só que não.

Durante anos o filme Antes do Amanhecer, dirigido por Richard Linklater e lançado em 1994, dividiu a humanidade entre os que defendiam que eles deveriam se reencontrar e viver felizes para sempre e os que rechaçavam a ideia, com medo de ver o encanto se quebrar. Para esses últimos, seria melhor se eles permanecessem distantes e (praticamente) desconhecidos um para o outro. Defendiam que as grandes histórias de amor eram as interrompidas antes da segunda página, como um livro não terminado que não dá chance ao leitor de descobrir seus vícios, chavões e irregularidades. Para os primeiros, as perguntas eram fatais: teriam se encontrado de novo, afinal? Como seriam se tivessem abandonado suas vidas para ficar juntos? Como sobreviveriam? Ele ainda olharia para ela com encanto ao vê-la chegar em casa cansada, despenteada, com sapatos gastos e meias furadas? Ela ainda suspiraria quando o visse acordar amassado, reclamar das contas a pagar, da escola dos filhos, da escolha para o jantar?

Até que, em 2004, Linklater voltou à carga e respondeu parte das perguntas deixadas em aberto dez anos antes. Em Antes do Pôr-do-Sol, o segundo filme da série, Jesse (Ethan Hawke), agora um escritor de certa fama, reencontra Celine (Julie Delpy) durante o lançamento de seu livro em uma livraria de Paris. A caminhada é reiniciada, agora pela capital francesa. É quando descobrimos que os dois estão satisfeitos, não felizes, com suas vidas. Ele é pai, está casado, leva uma vida comum, apesar do semiestrelato. Ela vive só, com um gato, após anos de relacionamentos insossos. Era um truque. Como no primeiro filme, Linklater deixa em aberto o desfecho: depois da valsa, Jesse terá coragem de largar tudo e, desta vez, tentar passar mais de 24 horas ao lado de Celine?

Foram necessários outros dez anos para a resposta derradeira: sim, eles ficaram juntos. E não importa se Antes da Meia-Noite, o terceiro filme da série, terá final feliz ou não: a história perdeu toda graça. Ao menos para os que defendiam, em um já distante 94, a eternização da velha (e até então única) lembrança.

Explico. No primeiro filme, eles são jovens, instigados pela vida, colecionam os primeiros desapontamentos e desesperos. Mas, nas poucas horas em que ficaram juntos, tiveram tempo para se apresentar, se encantar, se encontrar e se despedir, mas não de gastar seus repertórios, se repetir, errar, repetir o erro, se cansar, se irritar – nem de ter vontade de voltar ao primeiro encontro e se conservar naquele estágio.

O terceiro filme, que ainda não estreou no Brasil, chega para estragar a brincadeira: agora eles estão casados, vivem juntos, e, ao que parece (não, não vi o filme ainda), estão muito bem obrigado. Tenho acompanhado a expectativa de amigos e amigas que passaram os últimos anos imaginando o desfecho de uma história possível – sem se darem conta, talvez, que o encanto só permanecia intacto justamente porque o fim do enredo era desconhecido.

Essa névoa sobre algo imaginado e não concluído levou os fãs da série a compartilhar ao longo dos anos trechos, músicas, diálogos e imagens dos dois filmes de tempos em tempos (o mais famoso é o silêncio insuportável deles ao ouvir Come Here, de Kate Bloom, em uma velha loja de discos de Viena: raras vezes se vê os olhos dizer tanto sem nem sequer esboçar reação).

Agora, personagens e espectadores terão de aprender na marra que a primeira impressão é a primeira que engana, jamais a que fica – mais ou menos como demonstrou Michael Haneke em seu Amour, drama vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano capaz de arrancar até as unhas do espectador sem deixar brecha para meio suspiro. Era, até ontem, o melhor contraponto à história de Jesse e Celine. Afinal, um filme fala sobre a distância, leve e idealizada; outro, sobre o peso da proximidade, da velhice, da caminhada em direção ao final físico.

Visto à distância, os jovens amantes de Linklater pareciam propensos à eternidade justamente por guardarem do outro a melhor memória do melhor de alguém. Mas é na lida, no convívio, na companhia das agruras, na sopa a quem se reabilita, nas manhãs e nos fins de tarde de todos os dias, na vigília à febre dos filhos que se encontra a tradução mais exata da doação. O resto arranca suspiros, mas será sempre um flerte ingênuo de um ideal inalcançável.

PS: Em conversa com amigos, fui proibido de fazer essa comparação, mas vamos lá. Vi e revi algumas vezes os dois primeiros filmes da série. Sempre saio deles tentado a comparar os suspiros da história jamais concluída com os suspiros de torcedores pelos quase-gols de Pelé na Copa de 70, para mim os lances mais simbólicos de uma carreira que superou mil gols. Em comum, a cabeçada milagrosamente defendida por Gordon Banks no jogo contra a Inglaterra, o tiro do meio-campo contra a Tchecoslováquia, e, mais que todos, o drible com os olhos – e sem tocar na bola – sobre o goleiro Ladislao Mazurkiewicz, do Uruguai, têm o fato de a bola jamais ter chegado ao destino planejado. No último lance, quicou vagarosamente e escolheu passar pelo outro lado da História. Não houve cronista esportivo da época que não se rendeu, em uma tentativa poética, talvez desesperada, de justificar o destino: não era justo que aquelas bolas entrassem. Se entrassem, teriam um destino comum e banal, o fundo das redes, como qualquer outro gol feito por qualquer outro jogador. Em vez disso, escolheram a eternidade. No lance contra o Uruguai, por exemplo, a bola deixou o foco da câmera e jamais foi vista novamente. Ganhou, assim, o infinito.

Guardadas as devidas proporções, o que o diretor Richard Linklater faz ao encerrar a trilogia com seu Antes da Meia Noite é pegar aquela bola, tantos anos depois, colocar no fundo das redes e avisar: o encanto é imortal, mas seus amantes, de carne e osso.

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