Cultura

Ana Cañas de boca bem aberta

A política e o ativismo sexual equiparam-se e dialogam sensualmente em ‘Todxs’, o sexto álbum da compositora e cantora

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Uma serpente de boca bem aberta repousa entre as pernas de uma mulher na capa do disco Todxs, de Ana Cañas, e conta boa parte da história apenas pela ilustração. Aos 38 anos, a compositora e cantora paulistana exibe no sexto álbum de já sólida carreira seu lado mais feminino, feminista e ativista.

Em registro de soul-MPB, a segunda faixa, Eu Dou, faz-se um entre vários manifestos presentes: Dou pros leke, dou pras mana/ corpo laico a gente ganha/ dou uns beijos, uns abraçaços/ demorou, bora, orgasmo/ (…) dou na rua um rolê/ e o coração não para de bater/ fumaça na lata, rainha do espaço/ sou a buceta, não o caralho.

Equalizada entre a música popular branca de Marisa Monte e a black music negra de Tim Maia, Declaro My Love reivindica sexo e amor autônomos, de asas pavoas misteriosas:

Só vou ficar com você até as 21 horas/ às 22 eu olho o relógio e já era/ não tem ponteiro no tempo que a gente se ama/ não tenho fada madrinha nem sou Cinderela.

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Enquanto busca todos os tons de pele entre o pálido e o corado, a faixa-título (em parceria e dueto com o rapper Sombra, do grupo SNJ) mira também em todos os gêneros e sexualidades intermediários possíveis entre o masculino e o feminino, o que se expressa no “x” de Todxs. Lambe-Lambe, soul music prima do rap desafiador Lalá (2017, me lambe lá/ dê uma lambida lá), de Karol Conka, reforça a verve sexy-militante: Lambe, lambe, lambe, lambe mais/ não se apavore com uma mulher que goza.

Feminino por excelência, Todxs ferve no uso de termos da natureza para falar das coisas da coisa humana – flor (que derrete em Tão Sua), a flor da pele (Todxs), ossos (Cria Dor), pele e carcaça (A Onça e o Escorpião)… –, ao mesmo tempo que critica impiedosamente os cacoetes da dita cultura (Tijolo, que trata como “quadrilha de piaba” e “briga de peixe grande” as coisas dos “ricos” e do “Zé da Imprensa”, ou Independer, que proclama independência depois de constatar que pior do que está não fica).

Em meio à nuvem cerrada de venenos morenos (e loiros), o tempo de respiro ocorre quando o disco se aproxima da metade, em covers lancinantes de Eu Amo Você (1970), coescrita pelo soulman paraibano Cassiano, mas celebrizada por Tim Maia, e Tua Boca (1994), de Itamar Assumpção, o mais paulista e brasileiro dos bluesmen, essa última em dueto com o seminal Chico Chico, filho de Cássia Eller – branca e negro, homem e mulher, natureza e cultura.

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Em meio a um ataque em massa de flores carnívoras-musicais, Todxs declara acima de tudo que política da mente e ativismo do corpo são, afinal, a mesma coisa, e até aí soa como um tributo ferino a Cássia Eller, uma (anti-)Ana Cañas que fugiu daqui cedo demais. 

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