Cultura

Alvo de ataques bolsonaristas, Wagner Moura considera ‘Marighella’ um ponto de inflexão

Da concepção inicial do longa, em 2013, foram quatro anos até as filmagens, em 2017, e outros quatro anos até chegar aos cinemas

Saga. O filme, que traz Seu Jorge no papel do guerrilheiro, começou a ser escrito por Moura em 2013. (FOTO: Sandra Delgado e Downtown Filmes/Paris Filmes)
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Oito anos se passaram desde que Wagner Moura, ao lado do roteirista Felipe Braga, começou a escrever Marighella. Apesar de saber, desde então, que o filme seria um grande desafio em sua carreira – tratava-se, afinal de contas, de seu primeiro longa-metragem como diretor –, o ator não poderia intuir o quão pedregoso seria o percurso até aqui.

Da concepção inicial, em 2013, foram quatro anos até as filmagens, em 2017, e outros quatro anos até chegar aos cinemas. “É tanto tempo nesse ciclo que sinto como se o filme sintetizasse a minha trajetória. É quase como se ele marcasse o fim ou o início de alguma coisa”, diz. Após um brevíssimo silêncio, o ator ergue as duas mãos simetricamente e, com o tom de voz um pouco mais alto, atalha: “A gente precisa estrear esse filme”.

As primeiras sessões foram realizadas ao longo da última semana em pré-estreias em Salvador, Fortaleza, São Paulo e Rio de Janeiro. Na quinta-feira 4, Marighella chegará a, aproximadamente, 200 salas de todas as cidades do País. Terá ainda exibições especiais nas sedes da Mídia Ninja e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), em São Paulo, e no assentamento Jacy Rocha, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Prado, na Bahia. Trata-se do maior lançamento brasileiro, desde que a pandemia virou de cabeça para baixo o circuito de cinema.

A Paris, empresa responsável pela distribuição do título, tem em seu histórico sucessos que vão da biografia cinematográfica do bispo Edir Macedo, Nada a Perder (2018) até a franquia Minha Mãe É Uma Peça, protagonizada por Paulo Gustavo. A estratégia de lançamento de Marighella foi, porém, atropelada por dois acontecimentos: um imbróglio administrativo na Agência Nacional do Cinema (Ancine) e o fechamento das salas em decorrência das medidas de isolamento social.

“As polêmicas têm mais a ver com este momento do País do que com o personagem em si”

“Tenho ouvido muita gente dizer isso que você me disse, que este momento torna o filme ainda mais potente, mas eu acho que em 2019 era um momento igualmente forte”, rebate Wagner, sem esconder que o adiamento da estreia segue entalado na garganta. “Acho que a única diferença é que o filme vai enfrentar menos resistência agora, porque o apoio ao Bolsonaro diminuiu.”

O filme acompanha o período final da vida de Carlos Marighella (1911-1969), ex-deputado do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e um dos fundadores da Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo da luta armada que procurou enfrentar a ditadura militar. Apesar de se basear na detalhada biografia Marighella: O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo (Companhia das Letras, 784 págs., 82,90 reais), de Mário Magalhães, o filme tem um recorte temporal reduzido.

Seu eixo dramático é o da guerrilha urbana que terminou, para Marighella, no dia 4 de novembro de 1969, quando foi baleado e morto dentro de um carro, na Alameda Casa Branca, na região dos Jardins, em São Paulo, por agentes da Operação Bandeirante, comandada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Dops).

Ele era, naquele momento, uma liderança-chave da esquerda armada e chegou a ser apontado, internacionalmente, como um dos cem maiores especialistas em guerrilha urbana do mundo. No próprio ano de 1969, ele havia lançado o ­Minimanual do Guerrilheiro Urbano.

Moura, baiano como Marighella, diz que, em Salvador, não havia jovem da sua geração, interessado em história, que não conhecesse esse “personagem”. “A escolha pelo retrato do Marighella guerrilheiro tem a ver com o meu interesse nas rebeliões populares e nos personagens silenciados, mas tem a ver também com o meu desejo de fazer um filme de ação, capaz de atrair um público que não quer, necessariamente, ver um filme político”, diz Moura, que de sucesso popular entende bem.

Registro. Carlos Marighella (à dir.) ao lado da companheira Clara Charf, e com a sobrinha apoiada em seu ombro, em 1962. (FOTO: Redes Sociais )

O ator, talvez o que melhor simbolize o cinema brasileiro das duas últimas décadas, conta, com satisfação, que, 15 anos atrás, no auge da popularidade alcançada com o Capitão Nascimento de Tropa de Elite (2007) e o Olavo da novela Paraíso Tropical (2007), resolveu encenar ­Hamlet, justamente para mostrar Shakespeare para gente sem o hábito de ir ao teatro.

Desta vez, acredita que o ritmo intenso do filme, marcado pela câmera na mão e por um clima de thriller, possa contribuir para a atração do público. Mas o que talvez Marighella tenha de imbatível seja, sobretudo, o timing. No Brasil de 2021, a reivindicação do lugar de herói para um guerrilheiro que combateu a ditadura militar e a recuperação da ideia de patriotismo dentro da esquerda são, por si, mobilizadoras.

Tão mobilizadoras que têm gerado, da parte da direita mais extremada, uma reação de ódio. “As polêmicas em torno do filme têm mais a ver com este momento do País do que com o personagem em si.”, diz Moura. “O mundo, nos anos 1960, estava incendiado por revoluções. O ­Marighella foi um homem do seu tempo. Quem está fora do seu tempo é o Bolsonaro.”

Na quinta-feira 21, quando recebeu CartaCapital para a entrevista, na sede da produtora O2 Filmes, de Fernando Meirelles, no bairro de Vila Leopoldina, na Zona Oeste de São Paulo, Wagner Moura ainda não tinha sido alvo dos ataques de Mário Frias, secretário Nacional da Cultura, e André Porciúncula, o secretário Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura da pasta.

Parecia, porém, preparado para o combate ideológico que o lançamento do filme reacenderia. “Temos um presidente que se declara um admirador do (ex-coronel) Brilhante Ustra”, afirmou, como se constatasse a inevitabilidade do incômodo trazido por Marighella.

A escolha de Seu Jorge para o papel fez com que Moura fosse chamado de racista pela direita

O ator, que está passando uma temporada com a família em Los Angeles, tinha chegado ao Brasil na véspera da conversa e estava começando a dar as primeiras entrevistas sobre o projeto. Alguns dias depois, sairiam, nos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, suas primeiras declarações sobre a estreia, acompanhadas de considerações sobre Bolsonaro. Em uma delas, ele dizia que o presidente veio do esgoto da história; em outra, ­chamava-o de psicopata.

Porciúncula, o secretário hoje responsável pela gestão dos recursos da Lei Rouanet, logo escreveu nas redes sociais: “O sujeito que fez um filme glorificando um criminoso terrorista, que ensinava (sic) explodir escolas e hospitais, está falando sobre o esgoto da história?” Depois de repostar o comentário do subordinado, Frias emendou: “Psicopata é quem faz filme idolatrando um terrorista abominável. Achou que ia pegar comigo verba pública para este lixo panfletário? Pede para sair, moleque!”

O secretário, ao fazer esse comentário, acabou por reforçar a tese de Moura de que o filme foi, sim, vítima de “censura” dentro da Ancine. “Me senti atingido, sobretudo, como cidadão”, diz. A confusão envolvendo a liberação de recursos para a comercialização de Marighella tem como ponto de partida uma inadimplência da O2 Filmes, produtora do projeto.

Trincheira. Atacado após a exibição em Berlim, em 2019, o filme volta a entrar na mira dos secretários do governo. (FOTO: Abdulhamid Hosbas/Anadolu Agency/AFP e Redes sociais)

A pendência da O2 – que tinha outro filme em atraso – fez com que a estreia do filme, prevista para novembro de 2019, quando se completaram 50 anos da morte do guerrilheiro, tivesse de ser adiada. De lá para cá, a inadimplência foi resolvida, mas o contrato para que os recursos para a distribuição fossem liberados jamais foi assinado. “O filme foi prejudicado então, e seguimos sendo prejudicados”, diz. “Abrimos mão desse dinheiro para podermos lançá-lo. Não ganhei nenhum tostão com o filme ainda. Só investi.”

O incômodo dos bolsonaristas com o longa-metragem, que existia de saída, pelo próprio personagem, foi agravado depois da estreia no Festival de Berlim, no início de 2019. À altura, Moura atravessou o tapete vermelho do Palácio do Festival levando nas mãos uma placa em homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, no Rio de Janeiro.

Logo depois da exibição, ativistas de direita passaram a entrar no Internet Movie Database (IMDb), principal site do mundo para informações e comentários sobre filmes, para avaliar mal o título brasileiro, mesmo sem tê-lo visto, e baixar assim sua nota geral. Àquela altura, o site resolveu suspender as avaliações da produção e chegou a apagar críticas consideradas ofensivas.

Na última semana, voltou a acontecer a mesma coisa. Na segunda-feira 25, antes de ter sido exibido onde quer que fosse, o longa-metragem já contava com 46 mil avaliações, sendo 73% delas negativas, com nota 1. A ação fez com que o filme ficasse com nota 3,6 de 10,0. Apesar de, no Brasil, essa nota não ter o potencial de influenciar a recepção do filme – inclusive, porque a falcatrua é noticiada –, a atitude não deixa de ser desconcertante.

“Eu filmo como um ator. Filmo como gosto de ser filmado, sem muita conversa”

Os ataques ao filme chegaram a incluir até mesmo uma acusação de racismo, feita a partir de um contorcionismo de pensamento de Sara Winter. Em 2019, a autodeclarada militante antifeminista afirmou que Moura, um homem branco, foi racista ao escolher um negro para viver um “bandido branco”. Ele estaria, dessa forma, reforçando que os negros são bandidos.

“Marighella era negro, filho de um italiano com uma negra, filha de escravos muçulmanos que eram alfabetizados e tinham sido treinados em revoltas em seus países de origem”, relata Moura. “A mãe dele, embora casada com um italiano, anarquista, por sinal, costumava ouvir: ‘Mas você só tem filho preto?’ O ­Marighella era um negro de pele clara, que se definia como um mulato baiano.”

À época da exibição do filme no Festival de Berlim, Mário Magalhães, o biógrafo, chegou a escrever no Twitter: “Inimigos de Marighella sabiam que ele não era branco. Em 1947, o deputado Marighella criticou um colega que levara um carro da Câmara para a Bahia. ­Altamirando Requião reagiu: ‘Não permito que elementos de cor, como V. Exa., se intrometam no meu discurso’”.

No filme, o guerrilheiro, vivido por um Seu Jorge em estado de graça, é um negro de pele escura. Essa opção foi, no entanto, uma contingência. O escolhido para fazer o papel era Mano Brown, o mais famoso integrante dos Racionais MC’s, que tem um tom de pele semelhante àquele que se vê nas fotos de Marighella. Mas, um mês antes do início das filmagens, Moura percebeu que Brown, com sua intensa agenda de shows, não daria conta da rotina das nove semanas de filmagem.

Voos. Após viver Pablo Escobar, na série Narcos, o ator foi convidado para a nova produção de Brian de Palma. (FOTO: Netflix)

Em meio à busca de última hora, surgiu Seu Jorge, músico que despontara para o cinema em Cidade de Deus (2002) e que dividira com Moura o set de Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro (2010).

O elenco todo passou pelo treinamento de Fátima Toledo, preparadora cujo nome aparece em mais de 60 filmes brasileiros. E as atuações, sobretudo do grupo de guerrilheiros, são de fato marcantes. Moura, ao ouvir a pergunta – óbvia e ao mesmo tempo inevitável – sobre o quanto o fato de ser ator influenciou sua forma de dirigir, é, por uns poucos minutos, levado de volta ao set.

“Eu filmo como um ator, eu estou dentro da cena, e filmo como gosto de ser filmado, sem muita conversa”, tenta explicar. Mas como o que deseja dizer parece ser, no fundo, mais intuitivo que racional, ele se levanta da cadeira e reproduz os gestos de uma cena que dirigira apenas com o movimento corporal e o olhar. “Acho que não tem que falar muito, sabe? Atores são um pouco como crianças. Precisam ser deixados livres, precisam de carinho, mas também precisam que, em algumas horas, você diga: ‘Chega, agora é isso’”, compara, rindo.

“Acho que o meu papel principal, no set, foi manter todo mundo motivado. Era difícil estarmos ali fazendo aquele filme. É um filme duro, tenso. Eu queria que eles acordassem e dissessem, animados: ‘Vou para o set, vou filmar’”, prossegue. O espírito dos atores revela-se, ao fim da projeção, quando, já nos créditos, eles aparecem, abraçados, cantando o Hino Nacional. “Esse era um dos exercícios de preparação da Fátima, mas eu achei tão forte que pedi para o (fotógrafo Adrian) Teijido filmar.”

Moura para, por um instante, o relato da experiência, para lembrar que, apesar de, em 2013, já acalentar o desejo de filmar, o projeto não foi exatamente escolhido por ele. Moura estava em Salvador, de férias, quando Maria Marighella, sua amiga e atriz do filme – ela faz o papel da mãe de Carlinhos, filho do protagonista –, falou com ele sobre o livro de Mário Magalhães. Bel Berlinck, produtora da O2, estava em Salvador também e, ali mesmo, decidiram todos que queriam fazer o projeto.

Enquanto se discutia o perfil do futuro diretor, Moura, conforme ouvia as características buscadas, arriscou: “Sou eu então”. E assim foi. Diz, brincando, que o ideal teria sido estrear na direção com um filme com três personagens, mas se orgulha de ter feito um filme grande, de impacto. O ator conta que, por ser estreante, fez questão de se cercar de profissionais que conhecia bem e nos quais confiava. O fotógrafo Adrian Teijido é um deles.

(FOTO: Netflix, Globo Filmes e Redes sociais)

Teijido e Moura trabalharam juntos em Narcos, a série da Netflix, dirigida por José Padilha, na qual o ator vive ­Pablo Escobar. Outro projeto internacional que fizeram juntos foi Sérgio, cinebiografia sobre o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, também produzida pela Netflix, nos Estados Unidos.

A carreira internacional tem levado Moura a viver alguns períodos fora do País. Enquanto filmava Narcos, mudou-se com a família para a Colômbia. O trabalho em Sérgio levou-o para Los ­Angeles, onde segue até hoje.

Casado com a fotógrafa Sandra Delgado desde 2001 e pai de três filhos – Bem, Salvador e José, de 15, 11 e 9 anos –, o ator diz que não veria sentido em passar longas temporadas fora do País sem eles. E aí, indo todos juntos, é importante que os filhos consigam cumprir minimamente o calendário escolar.

Neste momento, ele está filmando The Shinning Girls, da Apple TV+, que traz no elenco Elizabeth Moss e tem a produção executiva de Leonardo DiCaprio. A série fala sobre um serial killer que agia em Chicago, na década de 1930, e tem previsão de estreia para 2022.

O ator está, além disso, se preparando para começar a rodar Sweet Vengeance, projeto de Brian De Palma, cujos detalhes ainda são mantidos sob sigilo. Graças ao projeto, Moura pôde mostrar Marighella para o diretor de Scarface (1983) e Os Intocáveis (1987), entre outros. E recebeu um elogio pelo plano-sequência do trem.

Mas, no ano que vem, Moura estará de volta ao Brasil para participar do novo filme de Kleber Mendonça Filho, diretor de Aquarius (2016) e Bacurau (2019). Ele está também envolvido, com Sérgio Machado, na produção de uma série sobre Maria Bonita para a Disney + e tem um projeto com Karim Aïnouz.

Apesar desses projetos no horizonte, Moura, neste momento, não se vê em condições de falar sobre planos ou desejos. A intensidade de Marighella, pelo que está na tela, mas também pelo que está fora dela, parece tomá-lo por completo. “Eu preciso fechar esse ciclo. Preciso.”

Antes de encerrar a conversa e partir para outra entrevista, numa agenda já toda atrasada, Moura pergunta, gentilmente, se há algo mais que eu deseje saber. Pergunto se ele queria, além de um filme sobre a guerrilha, fazer um filme sobre o amor – aquele entre um pai e um filho; entre um homem e uma mulher.

“Eu queria muito”, responde. “Antes da montagem, a relação entre o ­Marighella e o filho tinha uma presença ainda mais forte. Eu queria mostrar a dimensão do sacrifício que uma história como a dele carrega. O que move, no fundo, um revolucionário senão o amor? Além disso, alguém quer ir ao cinema para ver um filme que não fale de amor? Eu não quero.”

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1181 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE OUTUBRO DE 2021.

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