Cultura

Alucinação

A emoção de receber pelo correio o primeiro disco de Belchior, a dez mil quilômetros daqui

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Há dois anos não pisava em terras brasileiras e a saudade já doía um pouco. As últimas folhas secas caiam das árvores à beira do Sena, promovendo um festival dourado no chão molhado pela garoa. Sempre com a minha Pentax na sacola de pano, fotografava aquela beleza, revelava e enviava ao Brasil para mostrar o quão bonitas eram aquelas folhas douradas formando um tapete, tão diferentes das nossas tropicais.

O meu francês ainda era ruim e eu só conseguia ler a Nouvel Observateur, toda semana, com um dicionário Petit Robert ao lado. Na faculdade, fazia o maior esforço para entender as aulas do professor Pierre Albert, que já falava, naquela época, de televisão à cabo.

Portugal estava em festa com a eleição do socialista Mario Soares. A Inglaterra, de luto pela partida de Agatha Christie e a Argentina acuada depois de um golpe que derrubou Isabelita Peron e colocou no poder um general chamado Jorge Videla.

Enquanto 800 milhões de chineses faziam silêncio para homenagear o líder máximo Mao Tsé Tung, morto aos 82 anos, no Brasil, a cerimônia do adeus era para dois ex-presidentes, JK e JG. Na televisão, a lei Falcão estava no ar.

Foi num dia, já de inverno, que o carteiro deixou na minha caixa de cartas um papel cor de rosa, anunciando a chegada de uma encomenda, vinda de um Belo Horizonte. Cinco da tarde, ela estaria disponível na agência da Rue Breguete, mas quando ainda faltavam dez minutos para as cinco, eu já estava de pé naquele saguão frio esperando ela chegar.

A encomenda era um pacote leve, embrulhado num papel pardo e cheio de selos do mico leão dourado. Fui caminhando até o nosso apartamento na Rue de la Roquette, segurando firme aquele embrulho,  debaixo de um guarda-chuva barato para que não tomasse um pingo de chuva sequer.

O pacote foi aberto no chão da sala, forrada por um carpete azul anil medonho, rodeado de almofadas e tatames. Nós morávamos numa casa muito engraçada, não tinha sofá, não tinha mesa, não tinha geladeira, não tinha nada.

Com um estilete, fui rasgando com cuidado todo aquele durex que cobria o papel pardo. Rasgava as bordas e, bem devagar, ia deslizando o estilete para que saísse lá de dentro aquilo que certamente era um disco de vinil.

Sabia que era um disco porque os vinis sempre chegavam em Paris embalados entre duas placas de isopor, para que não que não empenassem no meio do caminho.

Alucinação!

Bati os olhos naquela capa do disco de um desconhecido Belchior, que nunca tinha ouvido a voz mas sim, lido algo nos recortes do Jornal do Brasil que me enviavam em  envelopes verde-amarelos.

Na contracapa, li o nome das dez músicas, cinco do lado A, cinco do lado B. O encarte trazia as letras mas não quis ler, tamanha ansiedade para ouvir a voz daquele cantor que surgia em meu país enquanto eu estava tão longe dali.

Retirei o vinil do papel fino, retirei a tampa de acrílico do pequeno som três em um que compramos na Darty e quando a agulha começou a deslizar, eu ouvi, pela primeira vez, o cearense cantando. Eu tinha certeza que ele estava cantando pra mim pra mim, um pobre brasileiro em Paris.

Eu sou apenas um rapaz latino-americano
Sem parentes importantes
E vindo do interior
Mas trago na cabeça uma canção do rádio
Em que um antigo compositor baiano me dizia: Tudo é divino, tudo é maravilhoso.

Hoje, sei que se você vier me perguntar por onde andei, no tempo em que você sonhava, de olhos abertos, lhe direi: Amigo, eu me desesperava. Sei que assim falando pensas, que esse desespero era moda em 76. Mas andava mesmo descontente, desesperadamente eu gritava em português.  

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