Cultura
Alucinação
A ressaca de quem dormiu e acordou sem saber se os absurdos do noticiário eram sonhos, paródias ou delírios da vida real
Acordei cedo, de novo, depois de ter dormido tarde. De novo. Passei parte do dia anterior num limite entre o desconforto e o pânico por estender a linha de um compromisso até o horário do último ônibus.
– Se ele passar, não volto pra casa.
Por aqui, não temos táxi ao estender a mão. É tarde para tirar as pessoas da cama. Os amigos que moram perto estão longe. Não há trilhos subterrâneos. O medo de não conseguir voltar para casa passeou por um instante na minha cabeça e se instalou. Parecia um medo domesticado, sobretudo quando alguém me ofereceu uma carona para dali a duas horas. Aceitei.
Esgotado por um dia que começara cedo e terminara tarde, cheguei a salvo em casa com a fome de todos os mundos. Deitei com a calça e a camisa do dia todo após comer feito um lanche esquentado no microondas. Parecia caminhar na água e não tinha controle sobre o que eu falava, naquela última gota de combustível garantido pela última xícara de café do dia.
As pilhas de livros e revistas de novo se acumulam na mochila, e não há dia em que não receba convites e sugestões e dicas para engordar a pilha de coisas que preciso ler para poder escrever para poder dizer com mínima clareza o que me propus a falar.
O café é a âncora que me impede de jogar a mochila para longe. Ele me garante a sobriedade quando o corpo pede anestesia, e me lembra diariamente que, a certa altura da vida, não tem nada mais vergonhoso do que ser incapaz de falar sobre Aristóteles ou qualquer filosofia por mais de dois minutos – em breve, me avisa o jornal, haverá na banca uma coleção de obras de grandes filósofos, aqueles que prometemos ler ao fim da adolescência. Desta vez não temos desculpas a não ser a pilha de leituras atrasadas numa mochila já devidamente forrada e o medo de chegar em casa e descobrir que o filho de dois anos se tornou um homem enquanto estávamos ocupados com o ônibus e outras leituras.
E se o ônibus não passar? Como volto pra casa?
Ninguém pensa na Retórica de Aristóteles quando teme não voltar pra casa. Você pode chegar a salvo, mas o temor fica instalado. É por isso que, na segurança da sala, bastou fechar os olhos para voltar ao ponto onde perdi a condução. No sonho, abordava todo mundo que passava e me parecia familiar: “Pra onde você vai? Posso ir com você?”. Mendigando quilometragens, quando notei estava sozinho no Parque do Ibirapuera. Agradecia a carona, mas fazia um ano que morava a 90 quilômetros dali.
Eu conheço esse pânico. É o pânico de não ter controle do deslocamento. É o pânico da impossibilidade de seguir sozinho. De começar milhões de tarefas e não terminar nenhuma. De ficar em dívida com as gentilezas de quem altera a própria rota para não te deixar dormir na rua. Como é dormir na rua?
Estava em casa, e já não sabia se sonhava ou se apenas me desesperava. “Minha alucinação é suportar o dia a dia, meu delírio é a experiência com coisas reais”. A música tocava como um despertador, e eu seguia em dúvida se cheguei em casa nadando como no sonho da noite anterior.
“Parabéns, você nadou dois quilômetros”, disse a professora ao fim da aula de quarta-feira, e eu mentalmente olhava para a rua tomada de automóveis e calculava até onde aquelas braçadas me levariam. Sem muro entre sonho e realidade, passo agora boa parte do dia, geralmente à noite, com água até o teto da minha casa. Era como mergulhar num filme de David Lynch.
A pior ressaca é quando não bebemos nada no dia anterior e ainda assim acordamos confusos.
Eu reconheço esta confusão. É o delírio da experiência de coisas reais de que me fala a música. É o pânico de não saber se eu li o que li e se o que li estava no site de parodias ou no site dedicado à vida real. O ministro do Supremo é ou não é a favor da família? É ou não é a favor da poligamia? O investigado morto está vivo? O investigado vivo está morto? É sério que o jovem esfaqueou a vítima na zona sul? É sério que se ele for também esfaqueado todos poderemos pedalar em paz? É sério que os jovens ginastas estavam apenas brincando? É sério que toda boa amizade resiste a qualquer ofensa? É sério que a garota vomita e tem vergonha pela violência sofrida no banheiro da escola? É sério que as jovens gaúchas expostas na rede deveriam ser mais cuidadosas? É sério que o bastião da moralidade traiu o Brasil? O que é sério? O que é vertigem?
Com o que sonhei ontem à noite?
Como acordei e vim parar aqui?
Pensava em tudo enquanto olhava, já no dia seguinte, o ponto de ônibus da noite anterior. Já fui, já voltei, já sonhei, já li as notícias, mas não tenho certeza se já dormi. O sinal abriu, os carros passaram. O sinal fechou e os carros me deram passagem. No canteiro, segui parado, as unhas roídas, crente de que já havia completado a travessia.
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