Cultura

Alguém viu o Natal por aí?

A celebração era mais interessante quando envolvia alguma perspectiva de melhorar o mundo

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Alguns de meus conhecidos não acreditam na existência “real” de Jesus Cristo, dando-o por mito como Zeus ou Dioniso. Argumentam eles que não há evidência histórica da existência de Afrodite, por exemplo, razão por que os cristãos (maioria da população do Ocidente) não sentem obrigação nenhuma de idolatrá-la. Então, como ninguém ousa contrariar sua conclusão, eles, esses meus conhecidos, pedem evidência histórica da existência de Jesus, o Rei de Nazaré, e constrangidamente entendemos sua analogia.

Até onde podem levar-nos tais discussões, não sei. O que sei, contudo, é que a data de nascimento de Jesus, “real” ou não, era uma festa que, na minha juventude, fazia-nos muito bem. Havia sempre cerca de um mês, pouco mais, de cada ano, em que renovávamos o propósito de melhorar o mundo, cada um varrendo o pátio de sua própria caverna. Depois, enchia-se o inferno de bons propósitos, que ninguém tem memória de elefante.

Houve uma época em que o desejo de melhorar o mundo escorregou das virtudes eclesiásticas para mundanos pensamentos humanos. Muita gente morreu sem sofrimento, com a convicção de que se imolava em benefício desta sofrida abstração que se chama humanidade. Era a Política imitando a Religião. O Rei de Nazaré, “real” ou não, não morrera ele mesmo para redimir a sofrida abstração que se chama humanidade?

Então vieram outros tempos. Tempos em que o indivíduo tornou-se mais importante do que a massa, porque, enfim, a massa é alguma coisa incaracterística. A massa é apenas a massa. Se morre um indivíduo, com nome e sobrenome, com carteira de identidade, noiva, currículo escolar, aspirações, sonhos de sucesso, isso é uma tragédia e as pessoas todas se comovem com seu destino truncado. Se morre a massa, ninguém morreu porque a massa é incolor. Nestes tempos, os deuses são outros. Nem os deuses com caras humanas, como os gregos antigos, nem o Deus sem cara ou corpo, dos cristãos. O deus agora é a mercadoria e seu templo o supermercado.

Para uma nova religião, é lógico, surgiram os novos pastores. Foi assim que se iniciou a difusão da ideia moderna de que o Iluminismo foi um sonho fora da “realidade”, coisa de alguns dementes querendo consertar o mundo. O mundo não tem conserto, eles afirmam, fora do mercado. E se o mercado, este novo demiurgo, não consertar o mundo, isso é porque o mundo não tem conserto mesmo, e o melhor que se tem a fazer é cada um tomar conta apenas do quintal de sua caverna e providenciar para que sua família possa frequentar com galhardia o novo templo.

Às vezes, nostálgico que sou, sinto saudade dos tempos em que se festejava o Natal pensando apenas em melhorar o mundo.

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