Cultura
Agora Ziraldo tornou-se imortal
O chargista e cartunista, morto aos 91 anos, deixa uma obra que segue a fazer sucesso e a representar o Brasil


Você pode não gostar das pernas do Garrincha, dos edifícios do Niemeyer, da prosa de Guimarães Rosa, do cinema de Glauber Rocha, do pensamento de Celso Furtado, ou dos traços do Ziraldo. Mas nunca poderá dizer que viu algo semelhante.
Não se trata apenas de afirmar que se trata de “gênios”, lugar-comum movediço utilizado para classificar o inclassificável. Melhor seria tentar entender a originalidade de talentos que ganharam o grande público mais ou menos no mesmo período histórico, ali ao redor dos anos 1960, quando o Brasil aparecia como singularidade histórica, no auge do nacional-desenvolvimentismo.
Com todas as amarras de uma economia que preservava marcas do período colonial, o País era, entre todos os da periferia, o que parecia levar mais longe – ainda que aos trancos e barrancos – um projeto de desenvolvimento viável.
“Sem ter feito 30 anos ainda, eu estava vivendo dentro da redação de uma grande revista nacional, no meio do Brasil, no centro dos acontecimentos, os anos mais fascinantes da história da cultura brasileira, onde tudo era novo, o cinema, a bossa da música, o teatro nas praças, o pensamento, a esperança, as palavras. O Pererê nasceu no meio dessa euforia”, escreveu Ziraldo há 50 anos.
Morto aos 91 anos, no sábado 7, o provinciano de Caratinga que literalmente ganhou o mundo era tudo, menos saudosista. Aliás, era quase tudo: cartunista, quadrinhista, chargista político, ilustrador, designer, editor, jornalista, escritor, dramaturgo, roteirista, publicitário, locutor, jurado de televisão e – ufa! – ator.
Sim, ator: procure no YouTube Esse Mundo É Meu (1964), filme de Sérgio Ricardo, no qual nosso herói faz um improvável papel de padre. E ainda se gabava de cantar boleros com a competência de um Gregório Barrios.
Ziraldo criou a primeira série de quadrinhos do mundo a ter como protagonistas um menino negro com deficiência – o Saci – e um membro dos povos originários – Tininim, num tempo em que tais coisas não eram valorizadas. Era a Turma do Pererê, que mesmo publicada esparsamente nos últimos 65 anos, não tem comparação à altura. No mundo.
Os personagens centrais e suas namoradas – Boneca de Pixe e Tuiuiú –, conviviam com a onça (Galileu), o macaco (Allan), o jabuti (Moacir), o tatu (Pedro Vieira) e um coelho estranhamente vermelho (Geraldinho) – tudo supervisionado por Mamãe Docelina. Os nomes todos vinham de amigos de infância. Entre 1959 e 1964, o gibi vendeu como água. Saiu de circulação no mesmo mês do golpe.
O Pererê é uma espécie de fase “cinema novo” de Ziraldo. Ali ele inventou seu modo de narrar quadrinhos, com sequências cinematográficas, cortes abruptos, diálogos em ricochete, ao mesmo tempo que moldava uma síntese visual que amadureceria plenamente duas décadas depois. Foi um desenho que bebeu nas fontes do humor gráfico europeu do pós-Guerra – calcado em Sempè, André François e Saul Steinberg – e se consolidou com influências de Portinari, Di Cavalcanti e Aldemir Martins.
Foi ele o primeiro a colocar nas HQs um menino negro com deficiência, além de um indígena
Para além da estética, o Pererê expressava o ocaso do Brasil rural e a emergência de uma sociedade que aspirava a modernidade urbana. O País realizava, naquele momento, a transição demográfica e, nas páginas do gibi, os problemas sociais eram mostrados sem cacoetes acadêmicos, por meio de infindáveis peripécias num incerto ponto do “Brasil central”, defendendo seu modo de ser, sua floresta e recebendo novidades como a televisão, a luz elétrica e modismos litorâneos.
Ziraldo foi também o mais popular autor de livros infantis brasileiros das últimas quatro décadas. Sua estreia se deu com Flicts (1969), ousadia gráfica não figurativa, produzida em três dias e que mudou a percepção do que seria a literatura para crianças – até então marcada por personagens fofinhos e cheios de lições de moral. Flicts é pura ideia e conceito que puxa pela sensibilidade de quem o lê. Segue a ser reeditada, mais de meio século depois.
O seu O Menino Maluquinho (1979) já passa de 4 milhões de exemplares vendidos, sendo convertido para teatro e cinema, além de gerar uma série de outros produtos. No lugar da turma do interior de 20 anos antes, temos o garoto urbano a conviver com o divórcio dos pais e dilemas da passagem do tempo. São dois Brasis e dois alter egos de um autor que sempre buscou públicos amplos. Ziraldo era uma espécie de antibolha. Talvez seja esse o motivo por nunca ter se dado bem na internet.
Durante a ditadura, Ziraldo colocou-se claramente como um homem de esquerda. Nunca chegou a ter uma militância partidária, mas aproximou-se do PCB, nos anos 1970-80, tendo atuação marcante na luta pela democracia, em especial nas campanhas da Anistia (1979) e das Diretas (1984).
Um dos mais bem pagos artistas gráficos do País, desenhou incontáveis cartazes, ilustrações e logotipos para entidades populares, sem cobrar um tostão. Foi um dos pilares do Pasquim (1969-1991), em sua fase áurea, quando vendia mais de 100 mil exemplares por semana, escala astronômica para um jornal quase de fundo de quintal, que o levou à cadeia por três vezes no auge dos anos mais duros do regime.
O pai do Pererê foi candidato a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, em 2008. Não chegou lá. O escritor e membro da ABL Zuenir Ventura declarou no início da semana: “Ziraldo será o único brasileiro de sua geração a continuar sendo lido no ano 3000”. Pois é. O filho mais ilustre de Caratinga (MG) jamais precisou de fardão para se tornar imortal. •
*Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.
Publicado na edição n° 1306 de CartaCapital, em 17 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Agora Ziraldo tornou-se imortal’
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