Cultura
Agenda 2016
Quem tem saudade de agendas, daquelas agendas de papel?


Eu era doido com agendas. E era nessa época do ano, meados de outubro, que os meus olhos brilhavam quando viam as primeiras expostas nas vitrines das livrarias da minha cidade. Não me arvorava a comprar imediatamente porque, sempre, apareciam umas muito mais bacanas lá pro final de novembro, início de dezembro.
Quando eu era jovem, minha agenda era sempre a mesma, todo ano. Era uma agenda Pombo de capa preta, burocrática, daquelas que queriam que você organizasse a sua vida, sabendo exatamente o que faria às 8, 10, 12, 14, 16 e 18 horas. Eu ignorava as horas e seguia adiante.
Quando eu finalmente comprava a agenda, era um ritual. A primeira coisa que fazia era preencher aquela primeira página cheia de dados, mais parecendo uma folha corrida. Ia preenchendo linha por linha.
Enquanto era nome, sobrenome, endereço e data de nascimento, tudo bem. A coisa piorava quando começavam a perguntar o tipo sanguíneo, o nome do seu médico, um telefone a ser chamado em caso de emergência.
Eu ia preenchendo tudo, mesmo sabendo que jamais alguém precisaria daqueles dados, já que minha agenda passava o ano inteiro em cima da minha escrivaninha, nunca saia de casa. Mas eu preenchia cada linha. Até mesmo o grau de escolaridade e a cor dos olhos.
A segunda etapa era dar o pontapé inicial no ano novo que, inevitavelmente, chegaria. Começava a escrever o dia do aniversário de todo mundo. Todo mundo mesmo, não era só aniversário de pai, mãe e irmãos. Era aniversário de tias, tios, primos, vizinhos, amigos e gente que nunca conheci mas que admirava: Betinho, Yoko Ono, Oscar Niemeyer, Tomie Ohtake, Chico Buarque, João Cabral, Gabriel Garcia Márquez, uma multidão.
Adorava aquele cheirinho de novo de agenda nova. Páginas limpinhas, umas quase colando nas outras e uma fitinha de seda vermelha para marcarmos em que dia estávamos.
Eu fui crescendo e o ritual da agenda continuou, ano após ano. O dias iam passando e a agenda ia ficando cheia. Pagar conta de luz, de telefone, condomínio, assinatura Veja, plantão TV Globo, folga TV Globo, ligar marceneiro, último dia pra entrega do Imposto de Renda, essas coisas.
Quando inventaram o Post-it, muitas pessoas começaram a encher a agenda de papeizinhos amarelos. Eu nunca colocava nada dentro da minha. Só na última página, perto daquele mapa-mundi, eu guardava o jogo da loteria, que conferia toda semana.
As meninas gostavam de agendas cor de rosa e costumavam enchê-las de bilhetinhos de amor, embalagens de bombom Serenata do Amor, de Bis, de Diamante Negro, que ganhavam dos namorados. Algumas davam um beijo de batom em páginas específicas da agenda, pra ficar bem registrado.
A minha agenda, na verdade, ia ficando colorida porque cada conta paga, cada plantão que acabava, cada aniversário que passava, costumava riscar com caneta Stabilo Bos azul, verde e amarela, pra deixar bem claro: Foi!
Uma vez, pensei em ir guardando agendas velhas pra rir no futuro. Não durou três anos. Perdeu o sentido, joguei tudo no lixo num dia de desapego.
Quando chegava essa época do ano, eu costumava dar uma espiada em janeiro e fevereiro, checar o ano que passou. Ficava assustado ao ver como a conta de luz, de telefone e o condomínio tinham subido. Recolocava a fitinha de seda vermelha em outubro e continuava a viver os dias que ainda me restavam daquele ano.
Nesse fim de semana, quando passei na Livraria Cultura do Conjunto Nacional e vi as primeiras agendas de 2016 expostas, me deu uma saudade danada. Só uma saudade, porque nunca mais comprei uma agenda de papel, isso faz uns cinco anos. A minha agora é fria e calculista, aqui no computador.
Pensando bem, não passou pela minha cabeça comprar uma agenda 2016 de papel, porque as que vi na Livraria Cultura, ainda eram aquelas feias, daquelas com a capa preta, parecendo as agendas Pombo da minha juventude.
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