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Afinidades eletivas

Ao homenagear a Colômbia, a Bienal do Livro de SP traz à luz as aproximações entre os escritores dos dois países

Afinidades eletivas
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Galeria. O Nobel Gabriel García Márquez, morto há dez anos, e os contemporâneos Margarita García Robayo e Juan Gabriel Vázquez foram alguns dos nomes a figurar no espaço colombiano do evento – Imagem: Arquivo/AFP e Alejandra Lopez
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“De todo o nosso pretérito, só restaria duradoura a marca das tristezas, porque a alma é como o tronco da árvore, que não guarda memória das floradas passadas, mas das feridas que foram abertas em sua casca.” A citação é uma passagem do romance La Vorágine (O Redemoinho), uma das obras fundadoras do romance colombiano, que completa cem anos neste 2024.

As comemorações em torno da obra de José Eustasio Rivera (1888-1928) têm ocorrido desde o início do ano, com o lançamento, na Feira Internacional do Livro de Bogotá, de uma nova edição. O mesmo evento teve como país homenageado o Brasil. E não se trata de uma coincidência.

“Escolhemos esta obra e o Brasil porque há um parentesco claro entre as ­duas literaturas no que diz respeito à relação do homem com a natureza e à urgência de se preservar a Amazônia”, contou a ­CartaCapital a curadora do evento colombiano, Adriana Angel.

Foi por conta dessa homenagem da FilBo, aberta em abril, com a presença dos mandatários dos dois países, que o presidente Lula anunciou que a Bienal do Livro de São Paulo, que se encerra no domingo 15, teria a Colômbia como homenageada. “Há muitos paralelos entre as duas literaturas. La ­Vorágine, por exemplo, pode ser considerado um primo de Os Sertões, de Euclides da Cunha”, diz Félix Lozada, responsável pela edição comemorativa da obra.

A delegação colombiana da Bienal é composta por 17 autores de primeira linha, como Margarita García Robayo, nascida em Cartagena. Aos 44 anos, ela tem distinções importantes, como o prêmio Casa de las Américas e o PEN, e já foi traduzida em mais de dez idiomas.

Os principais temas abordados por Margarita são as relações familiares nos tempos que correm. É esse, inclusive, o assunto central de seu mais recente livro, La Encomienda (Anagrama), em que trata da relação entre mãe e filha.

Outro destaque é Gilmer Mesa, de 48 anos, que nasceu numa violenta “comuna” (favela) de Medellín e vivenciou a transformação da cidade, que era uma das mais perigosas do mundo – durante o domínio do Cartel de Medellín, nos anos 1980 e 1990 –, em um exemplo de recuperação de cidades por meio de projetos arquitetônicos e urbanísticos.

Entre o que de melhor a Colômbia produziu nos últimos tempos, estão as obras de Juan Gabriel Vázquez, como História Secreta de Costaguana (L&PM), O Barulho das Coisas ao Cair (Alfaguara) e As Reputações (Alfaguara). Sua narrativa se constitui de jogos reflexivos sobre episódios e personagens reais da história colombiana.

O que, obviamente, não faltou na Bienal de São Paulo – assim como não havia faltado na FilBo – foi o Nobel ­Gabriel García Márquez. Neste ano em que se completam dez anos de sua morte, a busca por obras do autor formou longas filas em Bogotá. No Brasil, a efeméride tampouco passou batida.

Entre os temas comuns, estão o extrativismo da Amazônia e a desigualdade social

No primeiro semestre, foi lançado o livro póstumo Em Agosto Nos Vemos (­Record), traduzido por Eric Nepomuceno. A obra foi concluída em vida, mas acabou por ser interrompida numa das fases a que Gabo mais se dedicava: a edição fina e a escolha final das expressões a serem usadas. O texto, de fato, não tem o refinamento de outros seus – mas é, ainda assim, um livro que vale a pena.

Também pela Record saiu o encantador A Caminho de Macondo: Ficções – 1950–1966, que traça, a partir de contos, ensaios, romances e textos para jornais escritos por Gabo, as referências que ele posteriormente usaria na construção da Macondo de Cem Anos de Solidão.

O volume antecede o lançamento, pela Netflix, da série baseada nesse que é seu mais célebre romance. Trata-se de uma superprodução, que contou com a construção de uma detalhada Macondo cenográfica em Tolima, no interior do país. A previsão de estreia é para este ano ainda.

“O gesto de convidar a Colômbia para a Bienal mostra que o Brasil também vê nossos problemas comuns: o extrativismo em nossa floresta amazônica, o racismo e a desigualdade”, diz, a CartaCapital, o ministro de Cultura colombiano, Juan David Correa. “Ao mesmo tempo, são países que ainda não descobriram o quão parecidos são e o quanto podem colaborar entre si. A faceta literária é apenas uma demonstração disso, e pode ter repercussões políticas e regionais.”

Correa acredita que, após o processo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), em 2016, os autores do país sentiram-se impelidos a tratar de temas que ficaram, por muito tempo, eclipsados pela guerra interna: as origens afro-colombianas e indígenas do povo, o debate ecológico e as questões de gênero. Hoje, esses temas perpassam as obras de vários escritores – exatamente como acontece no Brasil.

A próxima Festa Literária de Paraty, em outubro, também tem, entre os convidados, um autor de renome na Colômbia: Juan Cárdenas, nascido em Popayán, que lança O Diabo das Províncias (DBA), uma ficção com tom de ensaio.

O livro narra o retorno de um biólogo a sua pequena cidade natal e busca, por meio desse personagem, encontrar temas e mazelas comuns às cidades latino-americanas periféricas. Cárdenas, tradutor de Machado de Assis e Guimarães Rosa para o espanhol, crê que nenhuma análise do pensamento latino-americano poderia deixar o Brasil de fora – e vice-versa.

Correa segue a sonhar com essas e outras aproximações. “Espero que, agora, abra-se espaço para conexões menos evidentes que Bogotá–São Paulo. Por que não realizar um evento entre duas cidades-irmãs como Cali e Salvador?”, pergunta o ministro. “São ambas cidades históricas, marcadas fortemente pela escravidão, com grandes problemas sociais e com grande presença na cultura de seus países.” •

Publicado na edição n° 1328 de CartaCapital, em 18 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Afinidades eletivas’

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