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Acordes autênticos

Embora seu nome tenha sido muito atrelado à bossa nova, João Donato sempre abraçou os mais diversos estilos

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Legado musical. O pianista, cantor, compositor e arrajandor nascido no Acre morreu aos 88 anos, no Rio de Janeiro – Imagem: Pedro Palhares
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João Donato foi bossa nova muitos antes de o movimento musical ganhar essa nomenclatura. Em 1948, era um dos frequentadores mais assíduos do Sinatra-Farney Fã Clube, no bairro carioca da Tijuca, um aglomerado de admiradores desses dois artistas. Ali, munido de seu acordeão, participou de festas musicais ao lado do pianista ­Johnny Alf, do saxofonista e clarinetista Paulo Moura e das cantoras Nora Ney e Dóris Monteiro – dentre outros adeptos de um estilo suave de interpretação.

Donato, no entanto, nunca se sentiu exatamente confortável com o banquinho e o violão – substituído pelo piano, que assumiu de vez em 1953. É que o músico, morto na segunda-feira 17, aos 88 anos, vítima de pneumonia, no Rio, era, antes de tudo, um artista inquieto.

Coube a ele, não por acaso, levar a bossa nova a outro patamar, unindo-a a um estilo “cubano” de interpretação. O desejo de mistura e experimentação fez, inclusive, com que, ao longo da carreira, criasse parcerias e colaborações com nomes de outras gerações.

A imensa lista vai dos ícones do movimento tropicalista, como Caetano ­Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, a figuras da música brasileira contemporânea, como as cantoras Tulipa Ruiz e Céu, do rapper Marcelo D2 e o próprio filho, Donatinho, cujo estilo foi classificado pelo pai como um “teclado espacial”.

Com a mesma efusão com que saudou os arranjos do maestro americano Stan Kenton, um de seus ídolos declarados, Donato foi sempre abraçando os novos estilos musicais que lhe surgiram à frente. E, também por isso, foi tão bossa nova quanto jazz e tocou do baião ao funk, do rock ao hip-hop. Embora seu nome sempre tenha sido muito atrelado à bossa nova, seu caminho contou com muitos atalhos e bifurcações.

João Donato de Oliveira Neto nasceu no dia 17 de agosto de 1934, em Rio Branco, no Acre, e mudou-se para o Rio de Janeiro aos 11 anos. Sua família era aficionada por música. A irmã mais velha, Eneyda, tinha planos de ser pianista, e o irmão, Lysias, acabou por tornar-se o letrista das principais composições do irmão célebre. Donato deu os primeiros passos na música tocando acordeão. Foi com o acordeão nas mãos que, aos 7 anos, compôs os primeiros acordes de uma valsa em forma de declaração de amor infantil chamada Nini.

Os sons dissonantes de João Donato, que se profissionalizou na década de 1950, atraíram admiradores como João Gilberto e Tom Jobim. Este último foi, aliás, o produtor da estreia musical do pianista. Chá Dançante, lançado em 1956, com versões de No Rancho Fundo (Lamartine Babo e Ary Barroso), Baião (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) e Carinhoso (Pixinguinha e João de Barro). Depois do lançamento do álbum, Donato mudou-se para São Paulo e, pouco antes de a bossa nova estourar, migrou para os Estados Unidos, país que teria papel relevante em sua trajetória.

Foi lá, por exemplo, que ele desenvolveu um estilo particular de tocar piano. O toque cubano que se tornaria característico de suas composições foi burilado nas apresentações que fazia ao lado dos percussionistas e bandleaders Tito­ ­­Puente e Mongo Santamaria.

O toque cubano característico de suas composições foi burilado nas muitas idas e vindas para os Estados Unidos

Entre muitas idas e vindas aos Estados Unidos, ele trabalhou, no país, com o trompetista e cantor Chet Baker, o pianista e arranjador Sérgio Mendes e o saxofonista Bud Shank. Sua associação com o maestro e tecladista Eumir ­Deodato, outro expatriado, rendeu A Bad Donato, de 1970, um dos pontos ­waltos de sua discografia – uma combinação revolucionária do funk com o psicodelismo então reinante e marco da entrada do teclado em suas criações.

No início dos anos 1960, na primeira volta ao Brasil, ele lança Muito à ­Vontade e A Bossa Muito Moderna, discos,­ ­respectivamente, de 1962 e 1963. Muitas das composições de A Bossa seriam, posteriormente, acrescidas de letras. A colaboração de Gilberto Gil transformou as faixas Índio Perdido e Villa Grazia nas canções Lugar Comum e Bananeira. É fruto, inclusive, de uma parceria com Gil, o clássico A Paz, até hoje uma das canções mais regravadas de seu repertório.

Depois disso, Donato ainda passa nova temporada nos EUA e, no segundo retorno dessa década errante, lança, em 1973, Quem É Quem, que traz uma novidade em relação aos discos anteriores. Donato assume os vocais – segundo ele, incentivado por uma conversa com o ­crooner ­Agostinho dos Santos. Mas Quem É Quem custou a cair nas graças do público. Ele gostava de contar que, então, chateado com o pouco caso da gravadora EMI com o álbum, ele preparou uma estratégia heterodoxa para lançá-lo: apossou-se de algumas cópias, subiu num morro e lançou-as ladeira abaixo.

O álbum seguinte, Lugar Comum, é outra obra-prima de seu repertório que traz parcerias com Gil, Caetano ­Veloso e Gutemberg Guarabyra. Nesse período, Donato participou ainda de dois projetos icônicos de Gal Costa: Cantar, de 1974 (que traz uma memorável versão de A Rã), e Gal Canta Caymmi, de 1976.

Lugar Comum marcaria um longo período de ausência dos estúdios. Chateado com o desinteresse das gravadoras por qualquer coisa que não fosse óbvia, ele passou duas décadas longe dos estúdios – Leilíadas, de 1986, é ao vivo e instrumental. Seu retorno se deu em 1996, quando lançou Coisas Tão Simples, que trazia Doralinda, parceria com Cazuza. A partir dali, retomou sua discografia com vigor.

Serotonina, seu derradeiro álbum, chegou às plataformas de streaming em 2022. Repleto de canções positivistas e dançantes, é uma declaração de amor à vida. Faz sentido. Donato, mesmo após partir, deixa para todos nós um legado inestimável de alegria. •

Publicado na edição n° 1269 de CartaCapital, em 26 de julho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Acordes autênticos’

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