Cultura

Acabou chorare

De repente, sem grana, a turma toda se mandou para um sítio em Jacarepaguá. Por Alberto Villas

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Caetano exilado em Londres derramava melancolia num vinil perguntando “cadê o meu sol dourado, cadê as coisas do meu país?” Gil, também em Londres, gravava no Chappell’s Studios um disco  em inglês com apenas duas palavras em português: Tão e triste. Por aqui, no país tropical, Gal, mulher fa-tal, cantava: “Tô cansada/E você também/Vou sair sem abrir a porta/E não voltar nunca mais”.

No Rio, o ex-deputado Rubens Paiva, cassado em 1968, era preso em sua casa. Depois sumiria para nunca mais. Carlos Lamarca caia morto com cinco tiros no grande sertão da Bahia, mais precisamente num lugar chamado Pintada. A censura podava o filme “Como era gostoso o meu francês” porque onde já se viu índio nu na tela do cinema? Enquanto isso, o Edifício Andraus em São Paulo ardia em chamas. Era 1971.

O mundo girava. Bangladesh se descolava do Paquistão e o povo sofrido de Bengala ganhava um concerto by George Harrison. Os astronautas americanos passeavam na lua enquanto os cosmonautas soviéticos Patsaiev, Volkov e Dobrovolski morriam sufocados a bordo da Soyus. Louis Armstrong deixava definitivamente esse wonderful world tão sonhado e o Haiti, o pobre do Haiti passava de pai pra filho, de Papa Doc para Baby Doc.

Sem muito dinheiro no bolso e devendo meses de aluguel, cinco novos baianos – Moraes Moreira, Luiz Galvão, Paulinho Boca de Cantor, Pepeu Gomes e Baby Consuelo, aquela do nariz arrebitado, se mandavam de Copacabana para um sítio em Jacarepaguá batizado de “Cantinho do Vovô”. Sorry, John Lennon, mas o sonho por aqui ainda não tinha acabado.

Vou mostrando como sou

E vou sendo como posso

Jogando meu corpo no mundo

Andando por todos os cantos

E pela lei natural dos encontros.

Fora do eixo e nadando contra a corrente, os Novos Baianos se instalaram ali no meio do mato armando cabanas em cada um dos cômodos da casa. Bilhetes foram espalhados pelas paredes porque era preciso organizar o movimento. Um cozinhava o feijão, outro lavava a louça, um terceiro enxugava. Enquanto um cuidava do banheiro, o outro ia pra roça. O dinheiro que pintava era todo ele jogado dentro de um saco de pano velho apelidado de “mocó”.

A turma foi crescendo, vieram os muitos filhos de Baby e Pepeu, os garotos da Cor do Som, amigos de todo canto e nação. Até um índio boliviano de repente foi morar lá naquele pedaço de terra brasilis.

Era comum tomar banho ao ar livre, ver um novo baiano descascando batatas, outro varrendo o chão, gente pintando e bordando. Ver futebol na televisão era uma paixão que acabou virando o Novos Baianos Futebol Clube, time e disco.

Enquanto eu corria

Assim eu ia

Lhe chamar!

Enquanto corria a barca

Lhe chamar!

Enquanto corria a barca

Lhe chamar!

Enquanto corria a barca.

Nos dias de sol via-se roupas comuns dependuradas e nas noites de viagem, a lua furava o zinco salpicando de estrelas o chão. Lá fora, o Brasil do ame-o ou deixe-o, do Medici ou mude-se, vivia sua repressão enquanto lá no cantinho do vovô era só psicodelismo, curtição e muita criação. De vez em quando o som aumentava, o tempo fechava, a polícia baixava. Um dia a festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou. E o que era doce acabou-se.

Acabou chorare, ficou tudo lindo

De manhã cedinho, tudo cá cá cá, na fé fé fé

No bu bu li li, no bu bu li lindo

No bu bu bolindo

No bu bu bolindo

No bu bu bolindo.


Músicas citadas: If you hold a Stone, One O’Clock last morning 20th april 1970, Movimento dos Barcos, Mistério do Planeta, Preta Pretinha, Chão de estrelas e Acabou Chorare.

Poesia citada: José, de Carlos Drummond de Andrade.

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