Cultura

A visão monumental

Oscar Niemeyer, “único gênio do Brasil” segundo Darcy Ribeiro, construiu a identidade escultural do País

Eu prefiro o Rio. Palácio do Congresso Nacional em 1960, a rampa do Museu Nacional de Brasília em 2007 e o deenho do mestre para quem a arquitetura nada muda, "mas a vida pode mudar a arquitetura". Fotos: Reprodução do Livro Marcel Gautherot Brasília e Evaristo Sá/AFP
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Nada superará a beleza, nem todos os ângulos retos da razão. Assim reivindicava pensar o maior arquiteto e mais invocado sonhador do Brasil. Morto em 5 de dezembro de insuficiência respiratória, a dez dias de completar com uma festa, no Rio de Janeiro onde morava, 105 anos de idade, Oscar Niemeyer propusera sua própria revolução arquitetônica baseado em uma interpretação do corpo da mulher. “Único gênio” do Brasil, como o queria o sociólogo Darcy Ribeiro, ele foi duro nas convicções pessoais, mas sinuoso ao conceber os monumentos de concreto.

Nos últimos tempos, o artista dizia no estilo direto habitual que, fosse um rapaz hoje, em lugar de fazer arquitetura, percorreria a rua “protestando contra este mundo de merda em que vivemos”. Acontece que ele jamais deixara de imaginar um mundo diferente, mesmo na juventude que parecia sempre acompanhá-lo. (Ele jurava não sentir qualquer diferença, por exemplo, entre seus 60 anos e o recém-completado centenário.) Filho de fazendeiros, fora o único ateu e comunista da família, tendo ingressado no partido por inspiração de Luiz Carlos Prestes, em 1945. Como a agremiação partidária não necessariamente correspondera a seu sonho, descolara-se dela, na companhia de seu líder, em 1990. “O comunismo resolve o problema da vida”, acreditou até o fim. “Ele faz com que a vida seja mais justa. E isso é fundamental. Mas o ser humano, este continua desprotegido, entregue à sorte que o destino lhe impõe.”

 

 

E desprotegido talvez pudesse se sentir um observador diante da monumentalidade que ele próprio idealizara para Brasília a partir do plano-piloto de Lucio Costa. Quem sabe seus museus, prédios governamentais e catedrais não tivessem mesmo sido construídos para ilustrar essa perplexidade? Ele acreditava incutir o ardor em quem experimentava suas construções. “A arquitetura sempre expressará o progresso técnico e social do país em que se estabelece. E se nós desejamos dar ao homem o que lhe falta, devemos participar da luta política”, disse uma vez. No fim da vida, contudo, parecia descrente da função social da arquitetura. “Mas, quando ela é bonita e diferente, proporciona pelo menos aos pobres e ricos um momento de surpresa e admiração.” Como se todos pudessem lavar os olhos com sua arte enquanto a revolução não vem.

A ditadura dos anos 1960 o obrigou a sair do Brasil rumo à França, onde se estendeu seu sucesso internacional, apenas iniciado durante a construção do prédio das Nações Unidas, em 1946, ao lado de mestres como Le Corbusier. Recebeu diversos prêmios, mas também condenações. O crítico de arte australiano Robert Hughes, por exemplo, morto aos 74 anos em agosto último, deplorara seu sonho para Brasília, intitulando-o de “horror utópico”. Em 2005, Niemeyer respondera assim ao crítico da New York Times Magazine Michael Kimmelman, autor de um perfil do arquiteto intitulado O Último dos Modernos: “O senhor pode não gostar de Brasília, mas não dizer que viu algo parecido com ela. Talvez tenha visto algo melhor, mas não igual. Eu prefiro o Rio de Janeiro, mesmo com todos os assaltos. Mas as pessoas que moram em Brasília, para minha surpresa, não querem deixá-la. Brasília funciona. E, de minha perspectiva, a tarefa do arquiteto é sonhar, senão nada vai acontecer”.

Bem disse Le Corbusier que Niemeyer tinha “as montanhas do Rio dentro dos olhos”, aquelas que um observador pode vislumbrar a partir do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, um entre cerca de 500 projetos seus. Brasília, em que pese o sonho necessário, resultara em alguma decepção. Niemeyer vira a possibilidade de construir ali a imagem moderna do País. E como dizer que a cidade, ao fim, deixara de corresponder à modernidade empenhada? Houve um sonho monumental, e ele foi devidamente traduzido por Niemeyer. No Planalto Central, construíra a identidade escultural do Brasil.

Ele se formou em arquitetura na Escola de Belas Artes em 1934 e três anos depois apresentou seu primeiro projeto individual, o edifício Obra do Berço, no Rio. Nele mostrou as características que marcariam seus trabalhos ao longo dos anos, como plantas e fachadas livres, sob a influência de Le Corbusier.

Em 1939, idealizou o Pavilhão Brasileiro na Feira Mundial de Nova York, ao lado de Lucio Costa. Em 1946, foi um dos convidados a construir a sede da ONU na cidade. Para a Brasília inaugurada em 1960, projetara os edifícios do Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência da República, Congresso Nacional, Catedral e Esplanada dos Ministérios. Usara o concreto armado e estabelecera a construção de avenidas largas, blocos de edifícios afastados e amplos espaços vazios, rampas e vastas áreas verdes.

“Passei a vida debruçado na prancheta, mas a vida é mais importante do que a arquitetura”, gostava de dizer. “A arquitetura não muda nada, mas a vida pode mudar a arquitetura”. A filha Anna Maria, arquiteta e galerista morta há seis meses de enfisema pulmonar, aos 81 anos, deu-lhe netos. Ele foi bisavô e tataravô, casado duas vezes, a última há quatro anos. Por cinco décadas vislumbrou o Rio onírico a partir de seu estúdio na cobertura da avenida Atlântica. E, até as últimas internações, nunca dispensou a conversa com os amigos sobre seus projetos e um copo de vinho na hora do almoço. Niemeyer soube sintetizar a urgência das coisas: “A vida é demasiado curta, é um minuto. Um minuto que passa depressa”.

 

Leia a cobertura completa:

Nada superará a beleza, nem todos os ângulos retos da razão. Assim reivindicava pensar o maior arquiteto e mais invocado sonhador do Brasil. Morto em 5 de dezembro de insuficiência respiratória, a dez dias de completar com uma festa, no Rio de Janeiro onde morava, 105 anos de idade, Oscar Niemeyer propusera sua própria revolução arquitetônica baseado em uma interpretação do corpo da mulher. “Único gênio” do Brasil, como o queria o sociólogo Darcy Ribeiro, ele foi duro nas convicções pessoais, mas sinuoso ao conceber os monumentos de concreto.

Nos últimos tempos, o artista dizia no estilo direto habitual que, fosse um rapaz hoje, em lugar de fazer arquitetura, percorreria a rua “protestando contra este mundo de merda em que vivemos”. Acontece que ele jamais deixara de imaginar um mundo diferente, mesmo na juventude que parecia sempre acompanhá-lo. (Ele jurava não sentir qualquer diferença, por exemplo, entre seus 60 anos e o recém-completado centenário.) Filho de fazendeiros, fora o único ateu e comunista da família, tendo ingressado no partido por inspiração de Luiz Carlos Prestes, em 1945. Como a agremiação partidária não necessariamente correspondera a seu sonho, descolara-se dela, na companhia de seu líder, em 1990. “O comunismo resolve o problema da vida”, acreditou até o fim. “Ele faz com que a vida seja mais justa. E isso é fundamental. Mas o ser humano, este continua desprotegido, entregue à sorte que o destino lhe impõe.”

 

 

E desprotegido talvez pudesse se sentir um observador diante da monumentalidade que ele próprio idealizara para Brasília a partir do plano-piloto de Lucio Costa. Quem sabe seus museus, prédios governamentais e catedrais não tivessem mesmo sido construídos para ilustrar essa perplexidade? Ele acreditava incutir o ardor em quem experimentava suas construções. “A arquitetura sempre expressará o progresso técnico e social do país em que se estabelece. E se nós desejamos dar ao homem o que lhe falta, devemos participar da luta política”, disse uma vez. No fim da vida, contudo, parecia descrente da função social da arquitetura. “Mas, quando ela é bonita e diferente, proporciona pelo menos aos pobres e ricos um momento de surpresa e admiração.” Como se todos pudessem lavar os olhos com sua arte enquanto a revolução não vem.

A ditadura dos anos 1960 o obrigou a sair do Brasil rumo à França, onde se estendeu seu sucesso internacional, apenas iniciado durante a construção do prédio das Nações Unidas, em 1946, ao lado de mestres como Le Corbusier. Recebeu diversos prêmios, mas também condenações. O crítico de arte australiano Robert Hughes, por exemplo, morto aos 74 anos em agosto último, deplorara seu sonho para Brasília, intitulando-o de “horror utópico”. Em 2005, Niemeyer respondera assim ao crítico da New York Times Magazine Michael Kimmelman, autor de um perfil do arquiteto intitulado O Último dos Modernos: “O senhor pode não gostar de Brasília, mas não dizer que viu algo parecido com ela. Talvez tenha visto algo melhor, mas não igual. Eu prefiro o Rio de Janeiro, mesmo com todos os assaltos. Mas as pessoas que moram em Brasília, para minha surpresa, não querem deixá-la. Brasília funciona. E, de minha perspectiva, a tarefa do arquiteto é sonhar, senão nada vai acontecer”.

Bem disse Le Corbusier que Niemeyer tinha “as montanhas do Rio dentro dos olhos”, aquelas que um observador pode vislumbrar a partir do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, um entre cerca de 500 projetos seus. Brasília, em que pese o sonho necessário, resultara em alguma decepção. Niemeyer vira a possibilidade de construir ali a imagem moderna do País. E como dizer que a cidade, ao fim, deixara de corresponder à modernidade empenhada? Houve um sonho monumental, e ele foi devidamente traduzido por Niemeyer. No Planalto Central, construíra a identidade escultural do Brasil.

Ele se formou em arquitetura na Escola de Belas Artes em 1934 e três anos depois apresentou seu primeiro projeto individual, o edifício Obra do Berço, no Rio. Nele mostrou as características que marcariam seus trabalhos ao longo dos anos, como plantas e fachadas livres, sob a influência de Le Corbusier.

Em 1939, idealizou o Pavilhão Brasileiro na Feira Mundial de Nova York, ao lado de Lucio Costa. Em 1946, foi um dos convidados a construir a sede da ONU na cidade. Para a Brasília inaugurada em 1960, projetara os edifícios do Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência da República, Congresso Nacional, Catedral e Esplanada dos Ministérios. Usara o concreto armado e estabelecera a construção de avenidas largas, blocos de edifícios afastados e amplos espaços vazios, rampas e vastas áreas verdes.

“Passei a vida debruçado na prancheta, mas a vida é mais importante do que a arquitetura”, gostava de dizer. “A arquitetura não muda nada, mas a vida pode mudar a arquitetura”. A filha Anna Maria, arquiteta e galerista morta há seis meses de enfisema pulmonar, aos 81 anos, deu-lhe netos. Ele foi bisavô e tataravô, casado duas vezes, a última há quatro anos. Por cinco décadas vislumbrou o Rio onírico a partir de seu estúdio na cobertura da avenida Atlântica. E, até as últimas internações, nunca dispensou a conversa com os amigos sobre seus projetos e um copo de vinho na hora do almoço. Niemeyer soube sintetizar a urgência das coisas: “A vida é demasiado curta, é um minuto. Um minuto que passa depressa”.

 

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