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A violência tornada palavra

Édouard Louis, estrela literária francesa, oferece um retrato íntimo e pungente da classe trabalhadora

A violência tornada palavra
A violência tornada palavra
Trajetória. De adolescente devastado pela pobreza e pela homofobia a autor famoso – Imagem: Robert Jean-François
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Certa noite, Édouard Louis, estrela literária francesa que alcançou a fama aos 21 anos com O Fim de Eddy – relato devastador de sua vida como jovem pobre e gay no coração da extrema-direita, no norte da França –, encontrou algo intrigante enquanto vasculhava papéis em seu apartamento, em Paris.

Era uma fotografia de sua mãe, aos 20 anos, parecendo feliz. “Ela estava sorrindo e cheia de esperança”, diz ele, acrescentando sua incompreensão diante da imagem contrária à da mulher dura, lutadora e de rosto severo com quem conviveu na infância. “Imediatamente, comecei a me perguntar o que havia destruído aquele sorriso.”

Louis, hoje com 30 anos, e na vanguarda de uma nova geração de escritores autobiográficos, deu início ao que chama de “arqueologia da destruição de um sorriso”. E se viu novamente mergulhado na névoa cinzenta e nos tijolos vermelhos de sua aldeia, na casa que sua mãe, ­Monique, chamava de “ruína”.

Monique, nascida em uma família pobre do norte do país, engravidou aos 17 anos, abandonou os estudos, casou-se por conveniência aos 18 e, aos 20, viu-se presa a um homem que odiava. Aos 23, fugiu com os dois filhos para o apartamento apertado de sua irmã. A única saída era encontrar outro homem. Entra assim em cena o operário que usava loção pós-barba – “coisa rara naquela época” – e com quem mais tarde teria Louis.

Monique acabou numa casa de aldeia decrépita, criando cinco filhos. Seu marido recusou a interrupção de sua última gravidez, de gêmeos, e não gostava que ela sorrisse. Sua vida era fazer faxina, colocar refeições na mesa e ser chamada de vaca gorda pelo marido diante de todos na festa da aldeia. Ela não tinha carteira de motorista, qualificação ou dinheiro. Nem tomava decisões.

O autor, que virou best seller aos 21 anos, tem dois livros, um sobre a mãe e outro sobre o pai, lançados no Brasil

“O papel de minha mãe era ficar em casa, cuidar das crianças, fazer as tarefas domésticas e esperar meu pai voltar do bar”, diz Louis. “Essa espera está frequentemente no cerne da dominação masculina. Meu pai teria um acesso de raiva se não o esperássemos para jantar, porque ele não podia comer sozinho. Tratava-se de entrar no ritmo do tempo definido por um homem.”

Décadas depois, quando Louis fugiu para Paris e estava se tornando escritor, algo surpreendente aconteceu. A essa altura, ele tinha deixado de ser um adolescente devastado pela pobreza e pela homofobia, cuja única perspectiva de felicidade era beber álcool destilado em copos plásticos no ponto de ônibus da aldeia – e que não tinha lido um romance até os 17 anos –, e começava a trabalhar no best seller que lhe traria fama mundial. A mãe telefona para ele do vilarejo: “Finalmente, consegui. Coloquei todas as coisas dele em sacos de lixo e joguei na calçada”.

Ao romper as correntes, diz Louis, sua mãe se reinventou totalmente: “Aos 50 anos, encontrou uma linda liberdade, partindo para a cidade pela primeira vez na vida”. O livro autobiográfico resultante dessa história, Lutas e Metamorfoses de uma Mulher, é escrito da perspectiva de Louis. O romance foi aclamado como seu melhor livro até agora.

Algumas de suas obras já foram levadas ao teatro – caso de História da Violência, uma denúncia de agressão sexual, e Quem Matou Meu Pai, sobre como o trabalho em fábricas, a varrição de ruas e a política quebraram a vida e o corpo de seu pai. Esta última, combinada a O Fim de Eddy, está sendo adaptada por James Ivory como série.

Personagem. O escritor, em cena, na montagem teatral de Quem Matou Meu Pai – Imagem: Jean Louis/St. Ann´s Warehouse

Graças aos livros, seus familiares se tornaram heróis nacionais. Mesmo nos momentos mais sombrios, há uma ausência de julgamento nas representações de ­Louis – a dominação do pai sobre a mãe é retratada como um produto do tempo e ambiente do norte francês pós-industrial. “A violência não é responsabilidade de um indivíduo, mas resultado de um contexto”, diz.

Louis vê suas histórias como um relato justo, “mas não idealizado”, das pessoas da classe trabalhadora, contrariando o que chama de tendência da sociedade francesa a “caricaturar violentamente” os pobres.

Originalmente, ele começou a escrever a história de transformação de sua mãe, entrelaçando-a com a sua. Quando deixou a aldeia e foi para o ensino médio, em outra cidade, começou por se livrar de seus agasalhos esportivos e alterar a maneira como comia, falava, se movia e ria.

Quando foi estudar em Paris e escreveu o primeiro romance, veio a reinvenção mais profunda – mudando o nome, os dentes, a linha do cabelo, o rosto. Seus empregos, para sobreviver e pagar as enormes contas do dentista, incluíram trabalho sexual.

No final, Louis separou as histórias e escreveu dois livros: o primeiro sobre a mãe e a seguir o poderoso Mudar: ­Método, sobre suas próprias “metamorfoses paralelas”. A certa altura, Louis havia sido catapultado tão alto na escala social que passava o tempo com homens que possuíam quadros de Picasso ou Monet, e cujas contas de uma noite de hotel seriam equivalentes à renda de um ano de toda a sua família de sete pessoas.

“A violência não é responsabilidade de um indivíduo, mas resultado de um contexto”, diz o autor sobre a própria família

“O fato de ser um desertor de sua classe social te permite ver os dois lados do mundo, te dá uma posição de testemunha, capaz de enxergar o contraste entre essas vidas e o escândalo do contraste”, diz.

Durante sua transformação, Louis voltava para a aldeia usando palavras longas e exóticas, ou dizendo à mãe para tocar Mozart para seus irmãos. A divisão de classes criou um abismo que quase o matou. Certa vez, Louis reclamou de dores de barriga terríveis e a mãe pensou que quisesse apenas ser mimado. Ele acabou no hospital com um apêndice estourado. No fim, isso os uniria.

Escrevendo sobre a mãe, Louis sentiu que estava entrando para um cânone cultural de homens gays que contam histórias sobre mulheres. “O livro é a história de uma aliança entre mulheres e gays que percorre toda a história da arte”, diz. Ele sente que homens gays e mulheres “são dois grupos que viveram sob a dominação masculina”.

A homofobia sofrida quando criança prejudicou o relacionamento com a mãe. “Antes de sua libertação, ela tinha vergonha de mim porque me achava muito efeminado. Ela não tinha paciência com os filhos. Mas, no dia em que se libertou do meu pai, foi como se uma corrente elétrica de violência tivesse sido desligada. Quando deixou de ser a transmissora daquela violência, minha mãe tornou-se outra pessoa.”

Esta é a sua mensagem política. A violência da situação de uma pessoa gera violência contra outra. O tratamento dispensado pelo pai levou Monique à dureza contra seus filhos e a rejeição destes em relação a ela, “como uma tragédia grega onde a violência circula numa família”.

Depois que os pais de Louis se separaram, sua mãe rapidamente encontrou um novo homem, um zelador em Paris. Foi morar com ele e, na mesma época, Louis conheceu Catherine Deneuve, em um set. Procurando algo para dizer, contou a Deneuve sobre sua mãe e onde ela morava. Quando Deneuve disse que iria visitá-la, Louis pensou que fosse conversa fiada, mas, alguns dias depois, sua mãe ligou e disse: “Adivinha com quem acabei de fumar um cigarro? Catherine ­Deneuve!” Tornou-se uma espécie de “fábula de sua libertação”, Louis sorri. “Ela ainda fala sobre isso todos os dias.”

Há uma melancolia no final aparentemente feliz do livro. O questionamento de Monique ao longo de uma década – “Como eu poderia ir embora? Para onde eu iria?” – ecoa pela história como um fantasma de todas as mulheres que nunca conseguiram escapar. Sua mudança rápida com um novo parceiro levanta questões sobre se isso também poderia dar errado.

“Eu queria contar uma bela história que também pudesse deixar as pessoas com raiva”, diz Louis. “É a história improvável de uma mulher que se liberta após passar 25 anos com um homem que a esmagava. Eu queria que as ­pessoas perguntassem: por que mais histórias não terminam assim?” •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1268 de CartaCapital, em 19 de julho de 2023.

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