Cultura

assine e leia

A vida vivida entre as cinzas

Romance passado no Iraque, ganhador do prêmio Goncourt, celebra a resistência das pessoas comuns

A vida vivida entre as cinzas
A vida vivida entre as cinzas
A escritora Emilienne Malfato transformou o Rio Tigre em um narrador que tudo observa – Imagem: Maximiliano Luna
Apoie Siga-nos no

“Eu sou o Tigre. Há milhares de luas, atravesso o deserto, longo como uma veia sagrada.” É assim que a francesa Emilienne ­Malfato abre Que por Você se Lamente o Tigre, livro que se passa no Iraque contemporâneo e que ganhou o Prêmio Gouncourt na categoria romance de estreia em 2021.

Não é surpreendente que a narrativa seja forte em sua construção de imagens. Emilienne é, afinal de contas, uma fotógrafa premiada. Mas a força da obra reside também na reunião de diversos narradores numa prosa curta e pulsante, alinhavada pelas impressões dos personagens.

O próprio Rio Tigre surge como um narrador que observa, a partir de sua forma majestosa, as coisas que ocorrem em suas margens. Numa narrativa pontuada pela guerra e pelo derramamento de sangue, o Tigre é a força ancestral que tudo observa. Seu lamento é pelas vidas que correm em suas margens, pela opressão que acontece em seus arredores.

Em um conjunto marcado pelo realismo, trata-se de uma saída pela porta do fantástico, que possibilita à autora trabalhar com elementos aos quais os personagens humanos não teriam acesso.

QUE POR VOCÊ SE LAMENTE O TIGRE. Emilienne Malfato. Tradução: Raquel Camargo. Editora Nós (96 págs. 70 reais) – Compre na Amazon

O romance tem como protagonista uma jovem iraquiana cujo nome nunca saberemos – essa ausência é um dentre outros símbolos de sua posição inferior naquela sociedade onde ela mesma é uma propriedade a ser negociada.

Entre os outros narradores estão seu irmão Amir, que se torna o chefe da família depois da morte do pai, e Ali, um homem que introjetou a tal ponto as regras que jamais as questiona.

A história recente do Iraque se materializa a partir também de personagens pontuais, como um homem-bomba que explode num bairro comercial. Na antessala desse momento de horror está uma cena de poesia. O pai da narradora encontrou um livro que muito procurava, mostra-o para ela e, de repente, a bomba explode. Assim, aquele mundo de beleza estética – na descrição da cena, na possibilidade de ler o livro – acaba.

“Os homens de preto só deixaram cinzas atrás de si. Mas eles também voltaram ao pó. Por um tempo, minhas águas tornaram-se vermelhas sob as pontes quebradas”, lamenta-se o rio.

A autora descreve cenas de alta potência e beleza literária ao mesmo tempo que escancara horrores políticos e pessoais. Que por Você se Lamente o Tigre é um livro curto que, em suas páginas, explora as dores de um mundo em guerra, mas também celebra a resistência de pessoas comuns, mesmo quando tudo ao seu redor parece ruir. •

Publicado na edição n° 1295 de CartaCapital, em 31 de janeiro de 2024.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

10s