Cultura
A vida sobre uma carroça
Anna Muylaert volta a fazer um filme luminoso, que coloca, no centro da história, o exercício da maternidade
Dez anos atrás, Anna Muylaert vivenciava o sucesso. Premiado em Sundance e Berlim, representante do Brasil no Oscar e abraçado pelo público, Que Horas Ela Volta? (2015) alçou-a a um lugar que, embora tivesse uma sólida carreira, ela até então desconhecia.
E o sucesso, sabemos, tem duas faces. De uma delas brotou A Melhor Mãe do Mundo, em cartaz desde a quinta-feira 7. “Este filme nasce um pouco das violências que passei pós-sucesso”, diz Anna. “Acho que por isso criei uma personagem que protejo tanto, que quase pego no colo. O filme é menos para a gente ver os problemas, apesar de os problemas estarem lá, e mais para gerar compaixão.”
A Melhor Mãe do Mundo é, provavelmente, o trabalho mais doce de sua filmografia. A protagonista é uma mulher que, para fugir da violência do marido, põe os dois filhos na carroça com a qual trabalha e sai numa jornada da região central de São Paulo até Itaquera, na Zona Leste.
Nesse caminho, ela e nós entramos em contato com uma cidade na qual, da dureza e dos dramas sociais, brotam instantes de alegria e gestos de solidariedade. E não se trata de um olhar ingênuo. O que Anna faz é dar dignidade a personagens que, fora da tela, não são vistos como ela os mostra.
CartaCapital: Em Durval Discos (2002), Durval mora com a mãe. E Além de Tudo me Deixou Mudo o Violão (2013) traz a relação entre mãe e filha. Que Horas Ela Volta? virou, em inglês, The Second Mother (A Segunda Mãe). O filme seguinte a ele se chama Mãe Só Há Uma (2016). A figura da mãe te ajuda a tratar das questões que te interessam?
Anna Muylaert: Quase todos os meus filmes são sobre mãe. É Proibido Fumar (2009), não, mas a personagem da Glória (Pires) mora na casa da mãe. Mas são mães muito diferentes. Durval é um filme psicológico, Que Horas Ela Volta eu vejo como mais sociológico e este eu diria ser mais político. Acho que essa figura vai evoluindo. Eu desejo chamar atenção para uma figura central na vida de todos nós, mas invisível no planejamento da sociedade. Ela não tem direito a formação, informação ou pensão. A sociedade não pensa que essa grande educadora da humanidade, muitas vezes, não está preparada para esse papel, seja por idade ou por questões financeiras, sociais ou psicológicas. Acho que esse é o princípio do caos da sociedade capitalista.
CC: A semente do filme foi sua vontade de falar do quê?
AM: De violência. Eu, aos 50 anos, sofri uma relação de abuso. Fui entrando naquilo sem perceber e, quando não aguentei mais e quis me separar, veio uma violência maior. Uma amiga me disse: “Você estava numa relação de abuso”. Comecei a entrar em grupos que tratavam isso, e vi que, realmente, tinha permitido tudo aquilo. Primeiro, tive uma grande decepção comigo mesma. Depois, entendi que minha autoestima, apesar de eu ter construído tanta coisa, era muito frágil. Passei então a querer tratar disso. Um dia, outra amiga me falou das catadoras que levam as crianças nas carroças. Essa imagem é muito potente e, a partir dela, surgiu a história. Paul Schrader fala que, para fazer um bom filme, você tem de falar de uma questão muito pessoal, mas tem de ter a esperteza de escolher um personagem bem distante de você.
“Este filme nasce um pouco das violências que passei pós-sucesso”, diz Anna, dez anos depois de Que Horas Ela Volta?
CC: Embora seja calcado em pesquisas e contatos com catadoras de material reciclável, o filme é uma fábula muito presente – como na cena do menino, sobre um cavalo e chapéu de cowboy, indo para um lugar que ele tanto sonha.
AM: Isso, de ser fabular, também veio como num flash. Pensei: ela vai dizer para as crianças que estão vivendo uma aventura, que é meio A Vida É Bela, né? Agora, o louco é que, no contato com essas mulheres, descobri que isso é comum: elas sofrem violência, fogem e dizem para as crianças que é uma aventura.
CC: Você tinha vontade de trabalhar com um elenco de pessoas pretas?
AM: Não havia uma intenção clara. Por causa da questão do lugar de que fala, cheguei a ter dúvida se podia fazer o filme. Ao mesmo tempo, no Que Horas Ela Volta? teve muita discussão sobre a Val (Regina Casé) não ser preta. Na Cooperativa do Glicério, a maioria não é preta, é parda, mas acho que, também pelo que aconteceu com o Que Horas, queria botar uma atriz preta, preta retinta.
CC: Como você chegou à atriz Shirley Cruz?
AM: Ela fez teste com um monte de atrizes. O teste era com a cena 1, na delegacia, que é difícil. A maioria veio com choro e tristeza e a Shirley, que era minha amiga, pensou que se fizesse a coitadinha eu não ia gostar. Ela chegou com a proposta de uma mulher que não está triste, está quebrada. Eu a defendi muito para o papel, embora não fosse famosa. Aí, para ter alguém famoso, a distribuidora teve a ideia de chamar o Seu Jorge, que funcionou maravilhosamente.
CC: Depois de Que Horas Ela Volta? você fez Mãe Só Há Uma, Alvorada e Clube das Mulheres de Negócios, que não foi bem recebido. Embora seja parte do ofício, é difícil, depois de um grande sucesso, lidar com essa sensação de ter realizado projetos que não alcançam a mesma repercussão?
AM: Mãe Só Há Uma é um filme de baixo orçamento, e eu não tinha, com ele, a pretensão que tinha com Que Horas Ela Volta? Alvorada é um filme de que gosto muito, mas é mais experimental. O Clube era ambicioso, mas não conseguimos captar o orçamento necessário e o filme ficou menos benfeito do que eu gostaria. Um filme, para dar certo, depende de um determinado alinhamento de planetas. Fiz nove filmes: vai ter uns melhores e outros piores. •
Publicado na edição n° 1374 de CartaCapital, em 13 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A vida sobre uma carroça’
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