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A vida por trás das câmeras

Sofia Coppola, que acaba de apresentar ‘Priscilla’ no Festival de Veneza, reúne em livro as memórias da realização de cada um de seus filmes

A vida por trás das câmeras
A vida por trás das câmeras
Cinebiografia. Em seu mais recente trabalho, Priscilla, que estreia no Brasil em dezembro, a diretora, de 52 anos, apresenta um retrato da jovem noiva de Elvis Presley – Imagem: Gabriel Bouys/AFP e A24
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Existe uma estética particular que percorre o trabalho de Sofia Coppola, seja quando ela volta suas lentes diáfanas e femininas para o gótico sulista presente em O Estranho Que Nós Amamos (2017); para a alienação urbana de Encontros e Desencontros (2003); para os excessos rococós de Maria Antonieta (2006); ou para os jovens suburbanos insatisfeitos em Bling Ring: A Gangue de Hollywood (2013).

Sofia é especialista em criar atmosferas e mundos inebriantes que parecem totalmente reais. Seus personagens oscilam entre o vazio, o desejo e a repressão. As cenas de seus filmes têm uma qualidade pictórica que ultrapassa a linha entre a beleza e a claustrofobia. Seu estilo singular influenciou a cultura popular contemporânea, desde os melancólicos video­clipes de Lana Del Rey até os romances de Emma Cline sobre jovens mulheres solitárias e potencialmente perigosas.

O primeiro livro de Sofia, Archive (Arquivo), coleta visões dos bastidores de seus filmes, começando por sua estreia na direção em 1999, com As Virgens Suicidas, e terminando com seu retrato da jovem noiva de Elvis Presley, Priscilla. A cinebiografia foi exibida no Festival de Veneza, encerrado no sábado 9, e tem sua estreia marcada pela MUBI, na América Latina, para o dia 26 de dezembro.

“Em todos os meus filmes há sempre um mundo e há sempre uma garota que tenta navegar nele. Essa é a história que sempre me intrigará”

Trancada em sua casa em Napa, na Califórnia, durante a pandemia, Sofia começou a vasculhar caixas de material antigo: polaroids, roteiros, recortes, cartas, rabiscos. Esses objetos descartados tinham adquirido uma qualidade nostálgica ao longo dos anos. A cineasta resolveu então reunir as lembranças mais significativas de cada projeto e complementá-las com reflexões e memórias pessoais.

“Em todos os meus filmes há uma qualidade comum: há sempre um mundo e há sempre uma garota que tenta navegar nele. Essa é a história que sempre me intrigará”, reflete a cineasta em conversa com a jornalista Lynn Hirschberg, na introdução do livro Archive, publicado pela Mack, que tem alguns trechos republicados a seguir.

Priscilla (2023)

Quando li pela primeira vez o livro de memórias de Priscilla (Beaulieu) ­Presley, Elvis e Eu, achei-o muito interessante e fiquei impressionada por ser tão pessoal e revelador. Adorei como ela escreveu de forma direta e compreensível sobre como passar por todos os estágios que a maioria das meninas passa até se tornar mulher – mas num cenário único e excêntrico, Graceland, com Elvis Presley.

Quando a mulher do meu primo, ­Kate Gersten, me contou que estava trabalhando num musical sobre a história de Priscilla, resolvi reler o livro. Fiquei envolvida com a história dela e seu mundo vívido, e com o quanto deve ter sido louco frequentar uma escola secundária católica para meninas em Memphis enquanto vivia com Elvis em Graceland, lutando para ficar acordada nas aulas e fazer os trabalhos depois de atravessar as noites em festas. Apreciei a força que ela demonstrou ao sair em busca da própria identidade, após crescer tentando se encaixar no ideal dele de mulher.

Em princípio, fiquei preocupada que ficasse muito parecido com Maria ­Antonieta, mas, quando conversei com ­Priscilla, entendi melhor sua perspectiva e comecei a ver que poderia se tornar um outro filme. Haveria desafios particulares, como encaixar grande parte de sua vida em duas horas e como encontrar alguém para interpretar Elvis.­ ­Jacob Elordi fez exatamente o que eu imaginava: de forma sutil, evocando o sentimento dele como foi descrito por ­Priscilla em sua vida privada. Fiquei muito feliz em conhecer Cailee (Spaeny), com quem Kirsten (Dunst) adorou trabalhar. Também foi incrível ver como ela podia se transformar de uma garota de 15 anos em uma jovem de 28 no mesmo dia.

Nesse set me senti totalmente no meu elemento, fazendo o que amo. Presenciei momentos que se pareciam com filmes passados, mas espero que agora esse seja meu estilo. Fazer a história de alguém que está vivo, trouxe um novo tipo de pressão, porque sempre quis que o filme deixasse Priscilla feliz e, ao mesmo tempo, incluísse minha representação de sua história. Espero que o público possa sentir como foi essa relação para ela, e ver como todos passamos por muitas coisas para nos tornarmos quem somos.

Maria Antonieta (2006)

Enquanto trabalhava no roteiro de Encontros e Desencontros, comecei a adaptar a biografia de Maria Antonieta, de Antonia Fraser. Eu estava indo e voltando entre os dois filmes, quando fiquei presa à visão empática de lady Antonia sobre Maria Antonieta. Antes, ela sempre tinha sido tratada como vilã, e aqui, foi retratada como figura humana: uma adolescente numa situação avassaladora. Eu quis que o espectador se sentisse vivendo ao lado dela, em seu mundo, e não olhando para um período empoeirado do passado. Queria que fosse quase como se ela tivesse feito o filme.

Ela não se interessava por política, mas era totalmente guiada por suas emoções e prazeres. Pensei na França do século XVIII e na forma como ela tinha sido narrada nos anos 1980 pelos novos românticos. Tudo parecia luxuoso e decadente, formando um grande contraste com a cultura cinematográfica dos anos 1990, que era reduzida e suja, com filmes rodados em lojas 7-Eleven. Eu sabia que ­Kirsten Dunst tinha todas as qualidades que a personagem precisava. Isso me ajudou a imaginá-la enquanto escrevia o roteiro.

Atmosferas. A ideia de infância em As Virgens Suicidas (1999); a alienação urbana em Encontros e Desencontros (2003); e os excessos rococós presentes em Maria Antonieta (2006) – Imagem: Focus Features, Columbia/Sony Pictures e Paramount Classics

Fiquei muito inspirada pela forma como John Galliano retratou épocas passadas em suas coleções e por ver peças reais de roupas daquela época no Met ­Costume Institute. As cores eram brilhantes, sem os tons de terra monótonos que vemos em muitos filmes de época. Pedi à lendária Milena Canonero para fazer o figurino e a Odile Gilbert, que trabalhou com Galliano, para fazer os cabelos.

Conseguimos permissão para filmar no Palácio de Versalhes. Nunca me esquecerei da chegada, no primeiro dia de filmagem, ao ver todos os nossos caminhões estacionados na frente. Passei pelo quarto de Maria Antonieta, onde eles nos deixaram guardar o equipamento fotográfico. Quando o filme foi lançado, muita gente achou que não era sério o suficiente, ou que a música estava fora de lugar. Mas senti que fizemos o que eu tinha planejado fazer. Não foi um sucesso quando foi lançado, então é muito bom saber que as pessoas ainda o assistem e se divertem.

Encontros e Desencontros (2003)

Passei muito tempo em Tóquio nos meus 20 anos. Adorei ir para lá trabalhar em projetos fotográficos e de moda, e aproveitei todas as oportunidades que tive para ir para o Japão. Naquela época, ir da Califórnia para Tóquio era outro mundo, e eu adorei a mistura de cidade moderna de Blade Runner com o lado tradicional do Japão.

Também parecia ser um lugar onde a cultura feminina predominava. Me senti livre! Naquela época, antes das redes sociais, não víamos tanto o mundo privado das meninas. Com tudo isso na cabeça, sentei-me à mesa de jantar à noite em Los Angeles e tentei reunir impressões que pensei que poderiam se juntar numa história para um filme.

Eu queria captar como era ir a Tóquio e todas as coisas que estavam em minha mente e eu tentava entender quando tinha quase 20 anos. Também tinha um devaneio recorrente de encontrar Bill ­Murray no Park Hyatt. Brian Reitzell me fez esses mix tapes, que chamamos de Tokyo ­Dream Pop, que ajudaram a criar o mundo do filme. Eu tinha ouvido muito ­Loveless, do My Bloody Valentine, quando estava no CalArts (Instituto de Artes da Califórnia) estudando artes plásticas e tentando ser pintora. Isso deu o tom para o resto.

Sua estética singular influenciou parte da a cultura pop contemporêna, dos clipes de Lana Del Rey até os romances de Emma Cline

Depois de escrever o filme, comecei a tentar localizar Bill e convencê-lo a ir ao Japão. Eu sabia que tinha que ser ele a interpretar Bob, ao lado de uma jovem Scarlett Johansson, que eu tinha visto como atriz mirim. Com o diretor de fotografia Lance Acord e o resto da equipe percorremos Tóquio à noite, filmando. Estávamos em um clima enevoado de jet lag, encontrando o caminho à medida que avançávamos. Fiquei preocupada que a história fosse indulgente, mas senti que tinha de fazê-la e tirá-la da cabeça.

As Virgens Suicidas (1999)

Adorei o livro de Jeffrey Eugenides, As Virgens Suicidas, quando o li, aos 20 anos. Eu estudava na CalArts e não conseguia encontrar uma maneira de fazer o que queria. Quando li aquele livro, tive uma imagem tão clara de seu mundo e de como o via como filme, que tentei a experiência de adaptar alguns capítulos como roteiro. Quando descobri que os produtores independentes Chris e Roberta Hanley detinham os direitos e planejavam fazê-lo com alguém, pedi que considerassem meu nome, caso o outro não desse certo. Uma das razões pelas quais escolhi fazer o filme foi porque não queria que alguém o estragasse – e estava convencida, por alguma razão, de que sabia como fazê-lo.

Inacreditavelmente, eles acabaram me contratando e, com um orçamento pequeno, fomos para Toronto e filmamos no verão de 1998. Sou muito grata aos Hanley e a todos os que me ajudaram a iniciar o que se tornou minha carreira. O diretor de fotografia, Ed Lachman, me ouviu com muita atenção para me ajudar a fazer o filme ficar como eu o queria, juntamente com nosso excelente departamento de figurino e arte. Nancy Steiner fez as roupas parecerem realistas, mas também lhes deu estilo. Tivemos atores maravilhosos que me apoiaram muito, com Kirsten Dunst como a lendária Lux Lisbon. Conhecê-la deu vida às garotas que estavam em minha cabeça. Na produção desse filme, fiz minha primeira tentativa de também dar vida à minha ideia de infância. •

Publicado na edição n° 1277 de CartaCapital, em 20 de setembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A vida por trás das câmeras’

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