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A vida pelo olhar de um burro

EO, que marca o retorno do diretor Jerzy Skolimowski ao set, é um original road movie passado entre Polônia e Itália

O longa-metragem venceu o Prêmio do Júri no Festival de Cannes em 2022 e chega agora às salas – Imagem: Sideshow/Janus Films
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A exibição de EO na competição oficial do Festival de Cannes em 2022 foi seguida por uma avalanche de comentários que reduziam o longa-metragem vencedor do Prêmio do Júri a uma refilmagem de Au Hasard, Balthazar, trabalho de 1966 do francês Robert Bresson.

A chegada, na quinta-feira 1º de junho, do filme do diretor polonês ­Jerzy Skolimowski­ ao Brasil mostra o alcance curto da comparação. EO pode ser tanto um diálogo com o Balthazar de Bresson quanto com o burro de Shrek. ­Skolimowski, no entanto, adota uma terceira via, distante da alegoria espiritual do francês e do animal humanizado da animação norte-americana.

Já no título o filme sugere estar mais interessado no aquém das palavras e do discurso que saturam o cinema contemporâneo. O nome do protagonista vem do som do zurro, ruído que em polonês soa como EO.

Do mesmo modo, o uso de diálogos é minimalista. Alguns nomes e falas entrecortam as primeiras cenas. E, até a metade do filme, vemos quase só um animal que observa ou reage, mas, obviamente, não fala.

A presença de humanos é fragmentada e descontínua. Em alguns momentos, como numa breve aparição da atriz ­Isabelle Huppert, perto do final, o diálogo é indecifrável. Então, como resumir esta narrativa que desafia nosso hábito de consumir tramas, cada vez mais reduzidas à tagarelice dos roteiros?

Por acaso, EO ecoa o título que Au ­Hasard, Balthazar recebeu no Brasil: A Grande Testemunha. Pois o mutismo do animal escolhido por Skolimowski como protagonista intensifica tudo o que se passa em torno dele. E o filme torna-se, por isso, uma invenção de meios visuais e sonoros para mostrar o que não pode ser dito.

O filme, em sua primeira parte, é construído a partir de uma perspectiva não humana

EO não é obra de novato. Jerzy ­Skolimowski começou a fazer curtas-metragens em 1960 e realizou seu primeiro longa, Sinais de Identificação: ­Nenhum (disponível na MUBI), em 1965. Esse filme já explorava uma linguagem anômala, experimental, para escapar do cerceamento imposto pelo regime comunista na Polônia da época.

Aos 82 anos e com uma obra composta de filmes inquietantes, o realizador alterou sua rotina mais dedicada às artes plásticas para retornar ao cinema após uma pausa de sete anos. Em vez de contar uma história, EO registra momentos de controle e liberação. Da primeira cena, no picadeiro de um circo, ao beco sem ­saída da última imagem, o filme acompanha uma sucessão de aprisionamentos e fuga.

Assim, EO é uma espécie de road ­movie passado entre a Polônia e a Itália. No caminho, o animal sofre abusos e maus-tratos. Mas, sobretudo, observa. Liberto de donos ou domadores, EO mergulha na natureza, onde sente as pulsações da vida e experimenta a morte de uma perspectiva animal. Nos momentos em que está preso, as percepções de EO ressaltam as relações de tamanho e vigor diante de outras espécies de quadrúpedes.

O filme, num primeiro momento, habitua o nosso olhar a perspectivas não humanas. Em seguida, introduz personagens humanos, ressaltando neles comportamentos que costumamos chamar de “animais”. Um caminhoneiro, por exemplo, atrai uma imigrante africana oferecendo alimento. E as mortes são todas cometidas por membros da espécie animal que se diferencia de todas as outras por se considerar “racional”.

O percurso de EO não segue a jornada linear e progressiva dos heróis ou anti-heróis. É mais um ziguezague, com pausas para sofrer ou contemplar nossa selvageria. Enquanto segue seu insólito personagem e registra com pessimismo o que o burro percebe, EO liberta o cinema do curral onde é mantido por artistas sem imaginação. E ressurge, brevemente, como arte capaz não só de contar histórias ou transmitir mensagens, mas, sobretudo, de criar visões. •


STREAMING

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Publicado na edição n° 1262 de CartaCapital, em 07 de junho de 2023.

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