Cultura
A vida escrita ante a vida vivida
Por meio das palavras clandestinas de uma dona de casa na Itália do pós-guerra, Alba de Céspedes se detém sobre a psique feminina e sobre a ambivalência entre os impulsos mais íntimos e o cotidiano possível


Em 1958, quando Caderno Proibido (1952), ganhou uma edição em inglês, o New York Times escreveu que Alba de Céspedes era uma das raras autoras, desde Colette, a captar, de forma profunda, o que significa ser uma mulher. O livro foi traduzido para o português em 1962, mas há muito seu rastro se perdera.
É, provavelmente, na esteira da boa acolhida das conterrâneas Elena Ferrante e Natália Ginzburg que a Companhia das Letras traz de volta ao mercado essa que é considerada a obra mais madura dessa autora nascida em Roma, em 1911.
Em Caderno Proibido, Alba expõe suas reflexões e inquietações sobre o que era ser uma mulher no pós-Segunda Guerra Mundial por meio das palavras clandestinas, e íntimas, de Valeria Cossati.
Valeria, a protagonista, tem 43 anos, um filho e uma filha crescidos, um marido que a chama de “mamãe” e uma mãe que a chama de “meu bebê”. Por força de penúria, ela se divide entre os afazeres da casa e o emprego em um escritório.
Tudo que saberemos sobre Valeria é aquilo que ela nos dirá – e dirá a si mesma – no diário que começa a escrever após adquirir, de forma impulsiva, um bonito caderno. O primeiro registro é 26 de novembro de 1950. O último, de 27 de maio do ano seguinte.
No início, as palavras traduzem, sobretudo, seu desconforto diante da necessidade de ocultar o objeto. Ainda que os relatos se restrinjam às miudezas cotidianas e às preocupações com a filha, ela se sente angustiada ao fazer algo que não compartilha com a família.
CADERNO PROIBIDO.
Alba de Céspedes. Tradução: Joana d’Avila Melo. Companhia das Letras (288 págs., 79,90 reais)
Aos poucos, no entanto, as palavras vão, elas mesmas, rompendo a superfície das coisas. “Aprender a compreender as coisas mínimas que acontecem todos os dias talvez seja aprender a compreender realmente o significado mais recôndito da vida”, diz. “Mas não sei se isso é um bem, temo que não.”
Conforme a fragilidade das certezas de Valeria vai sendo revelada, a narrativa torna-se um romance do qual se anseia conhecer o destino dos personagens. Embora a proximidade mais óbvia de Alba seja com Natália e Elena, há, na embriaguez sentimental e na ambivalência dos personagens, ecos de As Ambições Erradas (1935) e Laços (2014), dos também italianos Alberto Moravia e Domenico Starnone, respectivamente.
Dizer que Caderno Proibido é um retrato potente sobre o que era ser mulher 70 anos atrás não é em nada impreciso. Mas o livro é mais que isso. A matéria bruta de Caderno Proibido são, como constata a certa altura Valeria, “as grades que não podemos derrubar porque não estão fora de nós, mas em nós”.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1208 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A vida escrita ante a vida vivida”
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