Cultura

A vida entre contêineres

“A beleza está a apenas dois dedos de distância da bondade”, escreveu Virginia Woolf. O cenário de nossas cidades (e varandas) é um convite à hostilidade

Cena do filme "Branco sai, preto fica", sobre a vida mutilada das periferias brasileiras
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Foi um córrego que passou em nossas vidas, e ele foi aterrado há muito tempo. Tanto tempo que nem olhamos para o lado quando o ônibus arranca sobre a ponte e nós, cansados, chacoalhamos as cabeças com os olhares fixos para a tela de cristal líquido. Estamos tão secos que mal nos cumprimentamos, embora nossos rostos sejam conhecidos uns dos outros. Pela manhã até nos desejamos bons dias, mas ao fim do dia somos só suspiros e cansaços. Por isso ninguém fala. Nem se olha.

Na mochila, os papeis velhos apodrecem. Fiquei de ler e não li o suplemento do fim de semana passado, os jornais do dia anterior, a revista semanal da semana passada e a mensal de fevereiro. Tudo mudou tão rápido da manhã até o fim de tarde que nada pode ser mais obsoleto do que carregar tanto ontem na bagagem. Mas carrego. Em algum ponto o ônibus trava, a internet trava, o 3G desaparece e, penso comigo, não terei nada para olhar da janela a não ser um córrego aterrado e as mensagens antigas do celular.

Dessa vez, esqueço (na verdade, desisto) dos papeis velhos e dos preparativos para o fim do mundo, marcado para amanhã bem cedo, e busco refúgio em “O Sol e o Peixe”, livro de Virginia Woolf que acaba de ser publicado, com ensaios inéditos, pela editora Autêntica. Com ela me transporto para um necessário passeio pelas ruas que não são minhas e fixo a atenção nos pequenos poemas talhados em prosa de uma rotina comum: um parque em Londres, as descrições das manias e caprichos do pai filósofo e alpinista, os prazeres da leitura, as deferências a Montaigne, “alguém que se saiu bem na arriscada empresa de viver”. O ônibus parece o inferno na terra, mas ainda é possível respirar. “A verdade é que a vida no interior, com seus livros e seus vegetais e suas flores, é, muitas vezes, extremamente tediosa”.

Olho para o lado e não vejo nem vegetais nem flores; só cansaços. Parado no trânsito, corro os olhos nas páginas e sou convidado a “saborear ao máximo” aquele caminho, pois “todas as estações são desfrutáveis e “mesmo o sono, essa deplorável redução do prazer, pode estar pleno de sonhos”. Vai ver é por isso nutro tanta inveja aos estudantes que sentam e dormem até o ponto final e além. Eu, insone, só tenho os papeis velhos e um livro novo.

Aos solavancos, o ônibus segue com suas caras amarradas, e eu do lado de dentro tento me fixar na leitura. No meio do caminho, esbarro numa frase que repetiria como um mantra pelos próximos dias: “A beleza está por toda parte, e a beleza está a apenas dois dedos de distância da bondade”. Fecho o livro num estalo, como quem ergue os dedos para calcular as próprias distâncias.

Naquele ônibus ordinário da EMTU, em que o motorista dirige, cobra e devolve o troco, a beleza à nossa frente é uma cortina de fumaças e buzinas e gente em estado irritadiço com a coisa que anda e não anda, para e caminha. “Movimento e mudança são a essência do nosso ser; a rigidez é a morte”, segue Virginia Woolf, que provavelmente sabia o que era ficar parada no trânsito da metrópole.

-Depois a gente mata um vagabundo desse e acaba com a nossa vida – grita o motorista ao disputar espaço num canteiro com uma bicicleta.

Fecho os olhos e tento reconstruir a frase. “A beleza está a apenas dois dedos de distância da bondade”. Mas nossos rostos estão cansados, os cabelos esmagados, os corpos esparramados, as bocas paralisadas, sem retoque e sem batom. Por isso, vai ver, não nos cumprimentamos, mesmo dividindo o mesmo banco todos os dias. Apesar da leitura, aquele ônibus não foi feito para nossos afetos.

De página em página, lembro do meu amigo Lucas Guedes, de olhar mais atento e forte que o meu (aliás, sigam-no @lucasguedes), com quem naquele dia falava sobre um velho clipe da autointitulada Banda Mais Bonita da Cidade.

-Ali começou a gourmetização do mundo, disse ele, entre sério e sarcástico.

Rimos.

Depois pensamos um pouco e concluímos: que bom. Em que pese a apropriação do mercado sobre uma tendência desses anos 2010, com suas mesas recicláveis, coloridas, cafés, cervejas artesanais e bolo de fubá, o retorno à simplicidade, e à consequente sofisticação da simplicidade, nos rendeu sobrevidas entre cidades pobres por fora e podres por dentro. “Devemos ter em mira uma simplicidade democrática”, continua Virginia. Vai ver é por isso levantamos as bandeiras da ressignificação, e passamos a entender como belos os cabelos cacheados, os corpos não torneados, os corpos livres e vadios, os pelos, os pés pelos ventos, a voz à capela, os bumbos, a cor da pele, os alimentos naturais, as religiões não oficiais, as roupas largas de algodão, os chamados desvios de padrão e comportamento.

A beleza está a dois dedos de distancia da bondade. Por isso colorimos nossas paredes, nossos tênis, cabelos, unhas, vestidos, calçadas e estantes – como para entrar aos pontapés num filme multicolorido do Wes Anderson. Por isso pedimos corredores e ciclovias – para voltar a ter menos nuvens, e mais movimento. Vai ver por isso pedimos mais amor, por favor.

O movimento nos garante: estamos vivos. Mas estamos parados há tanto tempo no tráfego lento que não nos resta nada se não xingar. (Tentei fazer comigo o exercício: passar o dia sem xingar ninguém. Isolei os atores, não li o colunista misógino nem o articulista que baba na gravata e até me contive diante do oportunismo dos líderes do governo e da oposição. Mas a gente sai da arquibancada, a arquibancada não sai da gente, e se a gente não xinga na entrada, xinga na saída; xinga quem nos representa e quem não nos representa, xinga quem nos serve, do garçom ao general, xinga o lateral, ocupado na incompetência de se defender e subir ao ataque, e o treinador que o escalou, e o dirigente que bancou o elenco e o treinador, e a imprensa esportiva, a CBF, a FPF, a comissão de arbitragem, o juiz, todo mundo que nos presenteou com ferrolhos e sepultou o futebol arte, do qual só sabemos por ouvir dizer. No jogo de botinas não existe fair play e na nossa arquibancada não existe qualquer boa vontade).

Respiro. A bondade está a dois dedos da beleza, mas o motorista não viu beleza nem vida no ciclista, que pedala praticamente entre destroços de uma velha música: despedaçados, atropelados, cachorros mortos nas ruas, policiais vigiando, o sol batendo nas frutas, sangrando, ó meu amor, a solidão vai me matar de dor. Tudo são destroços e não há muito espaço nessas vidas verticalizadas, de calçadas enxutas, bueiros entupidos, canteiros inutilizados, córregos concretados e vegetação rasteira entre o ponto de ônibus e nossas casas.

O ciclista tem mais mobilidade e se desata de nós. No ônibus, a bronca do motorista segue agora para os estudantes que pisaram na faixa com o sinal ainda verde em direção à faculdade.

-Depois a gente defende a volta da ditadura e é criticado. Onde já se viu uma zona dessas? Todo mundo atravessa a hora que quer e ninguém tá nem aí pra nada, bicho. Por mim era ditadura na veia: cada um por si e Deus contra todos.

“Todos os extremos são perigosos”. Virginia Woolf já saltava das páginas enquanto me dizia que “nada importa a não ser a vida; e; naturalmente, a ordem. (…) A liberdade, que é a essência do nosso ser, tem que ser controlada”. E, evocando Montaigne, “é preciso viver entre os vivos. (…) É possível que estejamos adormecidos neste mundo”.

É possível. Adormecido ou não, desço qualquer outro dia do ônibus já sem me incomodar com o cheiro de urina do ponto ou os buzinaços de quem ficou dentro do carro. A busca da beleza onde não havia me leva à sacada de casa, que a construtora me vendeu como área gourmet. O que calo no ônibus, ali pronuncio: se não há janela não há alma e ali me preservo das cidades cinzas, carrancudas, sem bons dias e saudosas de velhas ordens. Ali absorvo e sou absorvido.

Um sol teimoso colore um fim de tarde. “É muito cedo para as lâmpadas e muito cedo para estrelas”. A poucos metros, as corujas namoradeiras voam e se aquietam no poste de luz. “Há sempre algum sedimento de irritação quando o momento é tão belo como agora”. Pela sacada entram os cheiros teimosos de grama molhada e do jantar dos meus vizinhos. É fritura. Entram também os gritos de “chupa” quando meu time perde e, aos domingos, os sons de panelaços, buzinas, ofensas a nordestinos e “vagabundas”. Há flores que enfeitam a vida, há flores que enfeitam a morte. Entre elas, e já desistente das notícias do dia, volto ao livro como quem busca uma sentença final. Encontro. “Podemos desfrutar de nosso aposento na torre, com as paredes pintadas e espaçosas estantes de livros, mas lá embaixo, no jardim, cavando, está um homem que enterrou o pai esta manhã, e é ele e os de sua estirpe que vivem a vida real e falam a língua real”.

Em tempo. Quem tiver fôlego para percorrer um fosso um pouco mais largo entre bondade e beleza não pode perder o filme “Branco sai, preto fica”, de Adirley Queirós, que estreia em 19 de março. Cheguei a ele enquanto rabiscada esta crônica. E veio a calhar. Vencedor do Festival de Brasília em 2014, o filme é a reciclagem de uma velha passagem bíblica que diz: “A quem tem, mais se lhe dará, e terá em abundância; mas, ao que quase não tem, até o que tem lhe será tirado”.

O filme conta a história dos que pouco tinham em uma cidade-satélite de Brasília, a meca do urbanismo e do planejamento que cuspiu para as franjas da planície e do poder os seus servidores mais vulneráveis. Entre construções e ruínas, os moradores já nascem condenados entre puxadinhos claustrofóbicos, contêineres escuros, quartos cheios de tralhas, sem janela, sem alma, com muitas grades, poucos azulejos e muito bolor. A arquitetura é a síntese da fotografia dos mortos-vivos aprisionados após uma ação policial em um baile funk que os mutilou, levando a amputar uma das pernas. A ordem no baile, durante a ação armada, era clara: “branco sai, preto fica”.

O equilíbrio dos personagens numa cidade sem cores, cuja vista na janela são trevos de estrada e terrenos baldios, os empurra para os porões e o submundo. Alguns chamam de marginalidade, e ela está mais perto do centro do que parece – e mais perto do que muitos gostariam. A reconstituição do passado (a perna perdida numa ação policial) é uma piscadela para o presente (como chegar ao centro?) e para o futuro (como serão narradas as atrocidades ocorridas no presente?).

A aliança entre os órfãos do baile funk, o rap e o submundo da indústria fonográfica dá origem a um tragicômico passaporte para as zonas centrais: a porta de saída é o rap; a de entrada, o brega. Na periferia fotografada por Leonardo Feliciano, ação é grito e o belo, licença poética. No tiroteio, beleza e bondade morrem na mesma vala.

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