Cultura

A travessia

No filme ‘A Busca’, o pai interpretado por Wagner Moura sofre uma surra pedagógica à procura do filho. Por Matheus Pichonelli

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Havia mais Theo do que Pedro na sala de cinema onde assisti, na terça-feira 19, ao tão falado A Busca, de Luciano Moura. Theo, para quem ainda não viu, é o pai interpretado por Wagner Moura e Pedro (Brás Antunes), o filho que coloca em prática um desejo, assumido ou não, de boa parte da plateia: romper com o mundo para fugir de um destino pré-moldado por quem grita, não pede, por uma obediência cega.

Provavelmente todo mundo ali pensou um dia em fugir de casa. Ou do trabalho. Ou da metrópole. Poucos levaram o empreendimento a sério, mas todos, de alguma forma, se colocaram na pele de Theo quando o personagem deu inicio à caçada pelo filho foragido. Ainda assim, ganhei, ao logo do filme, uma satisfação cruel ao ver o pai comer poeira e bater cabeça cada vez que deixava uma pista escapar – mais ou menos como torcia, na infância, pelo rato Jerry, e não pelo gato Tom do desenho animado.

É quase uma surra pedagógica, só que do avesso. O encalço, para Theo, é um exercício de desprendimento para quem tentava reconstruir à força uma autoridade inviável. Logo nas primeiras cenas vemos um filho apresentado pelos olhos do pai: um jovem sonolento, aparentemente frágil, distraído, sem grandes objetivos na vida e aparentemente incapaz de se apresentar a uma reunião que decidiria seu futuro num intercâmbio, do qual não quer participar, para a Nova Zelândia. Diante da falta, o pai, crente de que a viagem vai ser “uma boa experiência para o menino”, chega com as armas nos dentes: onde já se viu tanto descaso? E se enfurece diante da indiferença do filho, decerto incapaz de decidir o que é bom para ele. Não faltará muito para ser chamado de “lunático” em meio a um lenga-lenga sobre “na idade dele eu já cuidava da minha mãe”.

No esforço para contrapor mundos aparentemente incompatíveis, uma brecha para o contragolpe se abre. Um desses mundos tem base analógica, de madeira talhada, papel e caneta, som de vitrola, sem alarmes ou portão eletrônico. Outro é quase artificial, de comunicação e respostas instantâneas, telas sensíveis, redes conectadas e diálogos silenciosos. A travessia de Theo em direção à paternidade começa numa base e termina na outra; em nenhuma delas é senhor. Ele, como outros pais entre 30 e 50 anos de hoje, pertence a um mundo-transitório, desfeito e incompleto. É um grupo que aprendeu, na infância, a obedecer incondicionalmente aos pais e, na vida adulta, aos filhos. Não sem desgastes ou conflitos.

Diante do fosso geracional, os pais que na juventude não tiveram acesso à bolha da adolescência migram para os filhos todos os cuidados e expectativas que não receberam. Aos filhos resta se resignar a uma vida de cuidados excessivos e planos já traçados, caso do intercâmbio que Pedro se nega a participar. Cansado desse futuro pré-moldado e da agressividade dos pais em processo de separação, ele coloca em prática o plano de fuga (no lombo de um cavalo) e deixa a casa sem deixar recados.

É quando o conflito dá origem a uma grande história. A busca do pai para reencontrar o filho, mote do filme, é envolta de significados. Pelo caminho, ao seguir as poucas pistas deixadas pelo menino, Theo se depara com uma série de circunstâncias e personagens que o levam a uma travessia simbólica. Aprende na marra que, para sermos pais, é preciso nos assumir como filhos (assim, no plural). Pois Theo encontra, em diferentes cenas, uma profusão de pais e filhos: os que intercedem, os que dão abrigo, os que alimentam, os que se desesperam, os que oferecem ajuda, os que negam ajuda, os que deixam alertas. Em cada encontro assume um papel diferente: ora o pai agressivo, capaz de sair no braço para proteger o filho; ora mendicante, ora assustador, ora assustado, ora confiante. Em todos eles é pai e filho em atuação, como quando pede ajuda para atravessar um rio em uma balsa de garrafa pet. O navegador, como todo pai, avisa: a maré está baixa, não vai funcionar. Mas o pai, que é também filho, teima, arrisca, se quebra e se desespera – para logo em seguida receber abrigo. Ou quando pede um telefone celular emprestado numa localidade isolada e não se contenta com a negativa de um morador; se rebela diante de argumentos inválidos; para ele, como para todo filho, o “não é não” não faz o menor sentido.

A cada pista encontrada o desespero inicial se desfaz. Pelos lugares onde passa, descobre que o filho antes subestimado consegue feitos que o pai jamais imaginara ser capaz: dorme em favelas, faz amizades, faz escambo, mostra talento. Não quebra quando é solto no mundo. Ele se vira. Avança. Sobrevive, enfim.

A fuga, para Pedro, é enfrentamento e não desistência. Não parece ser sombra do rapaz sonolento inicialmente apresentado pelos olhos do pai: um piá de prédio, nativo digital, superprotegido, incapaz de saber o que é bom para o seu futuro e privilegiado por ter pais que se preocupavam em construir o caminho para ele.

Curioso é que, para fazer o próprio caminho, Pedro rejeita qualquer premissa; mais: abre mão dos meios em que tem o domínio e coloca em prática uma espécie de retorno ao mundo analógico (não por coincidência, iniciado com a venda do computador). Esse desnudamento é a estrada que o liga ao avô, ponto-chave da trama, interpretado por Lima Duarte. Pedro se torna inalcançável toda vez que os pais tentam contato por celular ou programa de mensagem eletrônica. Para avançar, os aparelhos são deixados para trás como lastros. Ele só passa a ser descoberto e compreendido quando a comunicação é manual, quase primitiva, seja por meio das cartas e desenhos trocados com o avô, seja pelas pegadas deixadas pelo cavalo. É como um recado: o mundo pode estar cercado de penduricalhos, mas a essência do que o move, os conflitos, os confrontos, os silêncios, os enfrentamentos e resistências, a busca, enfim, do lugar de origem, estes serão sempre os mesmos.

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