Cultura
A técnica do Bope a favor do crime
A história do capitão Adriano da Nóbrega é também aquela do submundo do jogo do bicho e da corrupção policial


No texto bíblico, o anjo caído ou decaído é aquele que, ao cobiçar um maior poder, acaba por entregar-se às trevas e ao pecado, sendo expulso do Paraíso. Em uma analogia com a passagem bíblica, no Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), o termo decaído é usado para designar os policiais corruptos ou a serviço do crime. A palavra remete ainda a Lúcifer, o anjo que se rebelou contra Deus.
Essa cultura existente no Bope é explicada na contracapa do livro Decaído, de Sérgio Ramalho, com a seguinte ressalva: “Não que esses policiais se julguem anjos ou demônios. Mas, com os treinamentos que recebem, vem também a capacidade de escolher entre a vida e a morte dos seus alvos”. Trata-se, de certa forma, de um poder divino outorgado a “jovens condicionados à batalha e submetidos a uma rotina de forte estresse”.
Um dos decaídos dessa estrutura perversa é Adriano da Nóbrega. Após entrar para a tropa de elite da Polícia Militar carioca e destacar-se nos treinamentos e ações operacionais, o capitão virou uma lenda no batalhão e ganhou diversos admiradores – dentre os quais, seus superiores. A despeito disso, ele acabou afastado da corporação por seu envolvimento com o jogo do bicho.
É por isso que, ao contar história de Adriano da Nóbrega, o autor de Decaído conta uma segunda história: a da mais famosa das contravenções cariocas. Houve um tempo em que os banqueiros do jogo do bicho gozavam até de certa aura romântica. Mas isso ficou para trás. Tudo mudou – e para pior. A nova geração de bicheiros implantou hábitos e métodos cada vez mais violentos para solucionar suas pendengas.
À época da ditadura, quando os militares passaram a prender os bicheiros, chegou-se a pensar que o jogo do bicho teria um fim. Mas isso não ocorreu – ao contrário. Em um período de intensa corrupção e violência de todos os matizes, os militares acabaram por se aliar aos contraventores,
“De fato, pouco antes do AI-5, alguns banqueiros do jogo do bicho foram presos. Providencialmente, um deles foi o jovem Castor de Andrade. Ele entrou na prisão como contraventor e saiu como o capo di tutti capi”, relembra Sérgio Ramalho, premiado repórter investigativo independente. No período em que ficou “hospedado” no imóvel usado pela direção do extinto presídio da Ilha Grande, Castor, como conta Ramalho, ficou a salvo de uma sangrenta guerra por domínio territorial.
Segundo o autor, foi nessa época que nomes como Capitão Guimarães, Major Emil Pinheiro e outros militares se associam ao jogo do bicho. “Castor saiu da Ilha Grande e tornou-se amigo de generais da ditadura – em especial, João Figueiredo”, diz. “Todos passaram a ser donos de territórios a partir da criação da cúpula, que segue poderosa até hoje.”
Foi esse poder que deslumbrou Adriano da Nóbrega, tornado mais tarde amigo da família Bolsonaro. Seu pai, o paraibano José Oliveira da Nóbrega, foi capataz da Fazenda Garcia e do Haras Modelo, em Guapimirim, na zona rural do Rio, de propriedade do banqueiro do bicho Waldemir Paes Garcia, o Miro, pai de Waldomiro Paes Garcia, o Maninho. O filho do seu José aprendeu o manejo da peixeira e tomou gosto pelo campo. Ao lado do pai, passava dias embrenhado na mata e, nas noites de lua cheia, o capataz fazia a “cerca da família andar”, eufemismo para grilagem de terras, como afirma o autor. Ia assim ganhando a confiança do patrão.
Decaído. Sérgio Ramalho. Editora Matrix (232 págs., 59 reais) – Compre na Amazon
Foi essa confiança que pavimentou o caminho para que Adriano da Nóbrega entrasse na PM, aos 18 anos, na Academia Dom João VI, antiga Escola de Formação de Oficiais, uma escola de Ensino Superior da corporação, em Jardim Sulacap, Zona Oeste do Rio.
Após o desligamento do Bope, Adriano solicitou transferência para o Batalhão de Choque. Não demorou para que, em diferentes batalhões, passasse a usar tudo aquilo que aprendeu no Bope ao arrepio da lei.
Em 2003, seu nome ganhou destaque nas páginas policiais dos jornais, acusado de comandar a extorsão, tortura e execução de um guardador de carros que, na véspera do assassinato, havia denunciado um grupo de milicianos. Em janeiro de 2004, Adriano foi preso, com outros sete PMs, e, em 2005, foi condenado pelo homicídio. Ele recorreu da sentença em 2007 e conseguiu a absolvição em novo julgamento.
Além de contar em detalhes a história de Adriano, o autor de Decaído perpassa o modus operandi das ações criminosas do jogo do bicho e dos grupos de matadores de aluguel, apontando também suas implicações sociais e políticas. Ramalho chegou, inclusive, a sofrer ameaça por parte dos personagens de seu livro.
Adriano, que nunca teve a exata noção da sua função policial, acabou expulso da corporação em 2014. Mas seu sonho sempre foi ser um banqueiro do jogo do bicho. Certa vez, como relata Ramalho, queixou-se a uma das irmãs dizendo: “Não sou miliciano, sou bicheiro”.
Em janeiro de 2019, foi alvo de um novo mandado de prisão, dessa vez pelo possível assassinato de Marielle Franco. Acabou por terminar a vida morto em um cerco policial, feito pelo Bope da Bahia, enquanto se escondia em um sítio na cidade de Esplanada, em fevereiro de 2020. Ao terminar a leitura do livro, lembrei de uma frase marcante dita por Lúcio Flávio, tornado filme e lenda, sobre policiais corruptos: “Polícia é polícia; bandido é bandido. Não devem se misturar; igual água e vinho”. •
Publicado na edição n° 1308 de CartaCapital, em 01 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A técnica do Bope a favor do crime’
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