Cultura
A soberana do rock
Rita Lee, morta aos 75 anos, fez na vida tudo que queria fazer e foi a mulher que mais vendeu discos no Brasil


Aos 75 anos de idade e dois anos após ter sido diagnosticada com câncer de pulmão, Rita Lee Jones morreu em sua casa, em São Paulo, na terça-feira 8. “São coisas da vida”, cantaria a soberana do rock e do pop brasileiros.
Rita Lee surgiu no cenário musical em uma época na qual os roqueiros brasileiros tinham cara de bandido e as roqueiras tinham a cara e a doçura de Celly Campello – intérprete de sucessos como Banho de Lua, que largou a carreira para virar dona de casa.
Rita, por sua vez, levou ao palco, nos anos 1970, um ousado visual andrógino e, na década seguinte, tornou-se a mulher que mais discos vendeu no Brasil – Rita Lee e Roberto de Carvalho, de 1982, ultrapassou 2 milhões de cópias. Fez, em suma, tudo que queria fazer, como ela própria cantou.
Filha de descendentes de americanos e italianos, Rita, na infância, teve aulas com a célebre pianista Magda Tagliaferro. Mas eram tempos de rock, embalados pela Beatlemania, e ela logo se desviaria da trilha clássica, e rígida, da primeira mentora.
No início da década de 1960, Rita formou com as amigas do Liceu Pasteur, tradicional escola francesa de São Paulo, o grupo Teenage Singers, no qual, além de cantar, tocava bateria. Em 1963, em um concurso realizado no Teatro João Caetano, as meninas conheceram os Wooden Faces, cujo baixista era Arnaldo Baptista.
Desse encontro nasceu o grupo O’Seis, que, depois, se chamaria Os Bruxos e, enfim, ganharia o nome de Os Mutantes – com apenas três dos seis integrantes iniciais. A ideia para o nome veio do título de um livro que Ronnie Von, apresentador do programa da Record do qual os jovens participavam, estava lendo.
Os Mutantes tiveram o primeiro grande momento de glória em 1967, ao acompanhar Gilberto Gil na canção Domingo no Parque, que brilhou no 3º Festival de Música Popular Brasileira da Record. O trio, posteriormente, integraria o movimento tropicalista, liderado por Gil e Caetano Veloso. Rita Lee fazia um contraponto pop e doce às experimentações sonoras dos irmãos Arnaldo e Sérgio Baptista.
Mas, em 1972, a cantora foi mandada embora dos Mutantes porque seu estilo não combinava com a nova sonoridade do grupo, cada vez mais calcada no rock progressivo. Ao lado da guitarrista Lúcia Turnbull, Rita formou o Cilibrinas do Éden, iniciativa de curta duração.
Na vida pública, a cantora era de uma sinceridade ácida. À doença, deu o nome de Jair
O disco Atrás do Porto Tem Uma Cidade, de 1974, marca o início de sua união com o grupo Tutti Frutti e o nascimento da roqueira que parecia uma mistura do rebolado de Mick Jagger com a androginia de David Bowie, e que lançou hits como Esse Tal de Roque Enrou, Agora Só Falta Você e Ovelha Negra.
O rock, é claro, não era benquisto pelos órgãos da repressão – ainda mais o feito por uma mulher. Em 1977, a cantora foi presa por, supostamente, portar drogas em casa. Estava grávida de Beto Lee – o mais velho de seus três filhos – e foi saudada pelas presidiárias com Ovelha Negra, seu principal sucesso à altura e, até hoje, tratado como um hit libertário por quem era então jovem.
A união musical e amorosa com Roberto de Carvalho, em 1976, transportou a artista para outro patamar. A roqueira Rita virou a pop star, e passou a falar de amor e relacionamentos. Mas sem perder a ousadia.
Afinal de contas, versos irreverentes como A gente faz amor por telepatia/ No chão, no mar, na lua, na melodia (Mania de Você), Me deixa de quatro no ato/ Me enche de amor (Lança Perfume) ou Brincar de médico é melhor que boneca (de Tatibitati) não se encaixavam no ideal feminino à altura dominante. Rita, em suas letras, tampouco deixou de abordar os altos e baixos da relação com Roberto – com quem viveu 46 anos.
A dupla Rita Lee & Roberto de Carvalho tornou-se uma grife tão poderosa quanto Roberto & Erasmo Carlos ou Michael Sullivan & Paulo Massadas. Musicalmente, os dois nunca se limitaram a um gênero. O som que fizeram foi tão rock quanto pop; tão new wave quanto MPB; tão tropicalista quanto punk. Rita gravou homenagens à bossa nova, aos Beatles e fez parcerias inusitadas com Moacyr Franco e Arnaldo Jabor.
Na vida pública, e nas entrevistas, a cantora era de uma franqueza ímpar e ácida. As frases enfáticas disparadas entre uma canção e outra, nos shows, eram lendárias. “Prefiro o Rio com dengue a São Paulo com Maluf”, bradou certa vez.
O câncer no pulmão, diagnosticado em 2021, recebeu o apelido de “Jair”, em referência a Jair Bolsonaro. Rita nunca escondeu os problemas que teve com as drogas pesadas e, na última fase da vida, defendeu com ímpeto os animais e a liberação da maconha. Além disso, passou a se dedicar à escrita mais longa.
Em 2016, lançou sua autobiografia e, nela, preconizou sua morte: os fãs empunhariam as capas dos seus discos e entoariam Ovelha Negra e as rádios tocariam suas canções sem apelar para o jabá. Mas muito antes, em 1976, já havia cantado, em Coisas da Vida: Depois que eu envelhecer/ ninguém precisa me dizer como é estranho ser humano nessas horas de partida.
Em março deste ano, já debilitada pela doença, Rita anunciou o livro Outra Autobiografia (Globo Livros), na qual fala sobre o enfrentamento do câncer. A obra, que tem capa feita pela própria Rita, terá o lançamento mantido para 22 de maio, dia de Santa Rita de Cássia.
Rita Lee não foi luxo nem lixo. Mas sempre será imortal. •
Publicado na edição n° 1259 de CartaCapital, em 17 de maio de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A soberana do rock’
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