Cultura

“A senhora entende que certos trabalhos só os homens fazem, não?”

Há 40 anos, a antropóloga do Sertão Ruth Trindade de Almeida mapeou a arte rupestre da Paraíba e indicou o caminho do futuro pelo passado

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Em 1972, a geógrafa, historiadora, antropóloga e arqueóloga Ruth Trindade de Almeida dirigia seu fusquinha entre São João do Cariri e Campina Grande, na Paraíba, quando tentou passar pelo leito de um rio seco. O fusca atolou. Ela ficou ali, desolada, olhando o carro inútil, quando passaram dois homens. Eles examinaram a situação, e um lhe disse: “A senhora entende que certos trabalhos só os homens fazem, não? A senhora é feminista?”

Hoje com 82 anos, Ruth diverte-se lembrando da história. “Era engraçado que, ali naquele fim de mundo, um sertanejo soubesse que o debate que se travava naquele momento girava em torno do feminismo, não?”, pergunta. “Mas eu resolvi não os contrariar. Colocaram tábuas embaixo das rodas do Fusca e o tiraram da areia.”

Naquele exato momento, Ruth vinha, com seu Fusquinha, de um dos mais de cem sítios arqueológicos que percorreu para lançar, em 1979, uma obra fundamental da pesquisa histórica no Brasil: A Arte Rupestre nos Cariris Velhos, editada originalmente pela Universidade Federal da Paraíba e hoje fora de catálogo, ausente das livrarias e até dos sebos virtuais. Nenhum pesquisador da arte parietal, a arte dos vestígios do homem do passado na América, pode ir adiante sem passar pelo livro de Ruth.

Os nomes que essa arte recebe são muitos: itacoatiaras, pedras lavradas, pedras pintadas, gravuras, pinturas, letreiros, grifos, litógrafos, petroglifos, pictografias, litografias, hieroglifos. “Se tem desenho, alguém morou ali. Tem água por perto. Tem marcas da presença”, ela sentencia. Pelo estilo dos desenhos, Ruth concluiu que as marcas guardam características comuns, “como se representassem elos de um só círculo de influências”, que os povos da região viviam todos próximos, uma civilização antiga, anterior aos índios Kariri, que habitou a região em períodos que vão de 5 mil a 10 mil anos antes de Cristo.

Inscrições nas pedras inspiram um sem-número de obras de ficção e relatos de mistérios

A profusão de desenhos e pinturas nas pedras da Paraíba foi o foco do trabalho de Ruth. Esses vestígios da presença de algum habitante original incrustaram-se na cultura popular nordestina e viraram tema de incontáveis obras, teses, ensaios, músicas, shows e espetáculos. Um dos discos-chave da psicodelia brasileira, o lendário Paêbirú (gravadora Rozenblit, 1975), de Zé Ramalho e Lula Côrtes, é um álbum conceitual todo feito sob o impacto das pinturas na Pedra do Ingá, na Paraíba. Jovens alimentam até a visão de que as inscrições ali seriam de origem fenícia, e há mesmo quem as atribua a visitantes

A arqueóloga Ruth Trindade de Almeida e o cordel que a homenageia, de Chicão de São João do Cariri: notável pioneirismo que ainda orienta a pesquisa na área e ajuda a proteger um legado da humanidade na Paraíba. Fotos: Arquivo pessoal.ao ficar viúva. 

extraterrestres.

Ruth é cientista, não crê em mistério. Sobre a Pedra do Ingá, admite que as formas, inicialmente abstratas para a pesquisa, possam conter temas relativos à mecânica celeste, ao céu, “mas não têm ligação com extraterrestres”, brinca. Alguns estudiosos defendem a tese de que está ali retratada a Constelação de Órion. Adeptos de outras teorias buscam explicações para outras coisas, como o fato de que uma das pedras, ao ser tocada, emite sons metálicos (comparados a badaladas de um sino). Como isso seria possível, dado que a pedra não é oca? Como não há uma datação precisa daquele sítio arqueológico, a arqueologia só pode analisar os símbolos e, com alguma liberdade teórica, conjecturar que “os quadrados, os círculos, os triângulos e os retângulos talvez sempre tenham existido”, como diz a estudiosa.

Nascida no Rio de Janeiro, Ruth Trindade de Almeida formou-se originalmente em geografia e história na última turma da antiga Universidade do Brasil, em 1954. Aos 25 anos, casou-se com um paraibano, o matemático Átila Augusto Freitas de Almeida, filho do historiador Horácio de Almeida (primo de José Américo de Almeida, escritor de A Bagaceira). Quando viu, estavam indo viver na aristocrática Areia, na Paraíba, de onde só saiu há alguns anos, ao ficar viúva. “Fomos com a intenção de ficar dois anos”, recorda.

Em 1970, chegou à França com uma bolsa para estudar arqueologia no Centro Aeroespacial de Toulouse. “Eu nunca antes tinha me interessado por arqueologia. Tinha noções, mas não sabia nada de escavações, do trabalho arqueológico mesmo”, lembrou. Teve dificuldades, porque só sabia o francês que aprendera no ginásio, e foi estudar a língua durante dois meses em Lyon antes de mergulhar nos estudos da pedra, da cerâmica, do osso e dos metais.

Leia também: O difícil retorno da arte roubada pelos nazistas

O disco Paêbirú, de Zé Ramalho e Lula Côrtes, é um tributo aos encantos da pedra

Logo após regressar ao Brasil, professora da Universidade Federal, já foi a campo, sua paixão. Ficou fascinada com o lajedo da cidade de Serra Branca, com o chão coberto de desenhos. A Universidade da Paraíba cedeu um carro, combustível e motorista para as pesquisas nos sábados e domingos. Durante dois anos, ela percorreu as pedras do Sertão. Crê que a explicação clássica é a que amarra todas as pontas da presença do homem antigo por ali ‒ a primeira ideia do povoamento da América, o homem se espalhando a partir do Estreito de Bering (que liga os oceanos Pacífico e Ártico, entre a Rússia e os Estados Unidos), que era de gelo então, chegando à América do Sul, subindo pela Argentina, adaptando-se ao Nordeste do Brasil.

Estima-se que existam mais de 500 sítios arqueológicos só na Paraíba

“Algumas datações mostram vestígios de 10 mil anos antes de Cristo. (A arqueóloga) Niede Guidon, que trabalha no Piauí, registrou datações de 50 mil anos. É um campo riquíssimo”, diz. “É um tema que está no auge agora, mas que sempre despertou muito interesse.”

Estima-se que existam mais de 500 sítios com artes rupestres na Paraíba, sendo alguns dos principais a Pedra do Touro, Pedra do Gato, Pedra Velha Chica, Gruta do Silêncio, Abrigo de Emas, Pedra do Ingá e o fabuloso Lajedo de Pai Mateus. “A arqueologia, sabe, é muito fragmentada. Você examina um sítio arqueológico e só pode tirar conclusões dali mesmo, a menos que faça estudos comparativos com outros. Isso é trabalhoso, e demora muito para se elaborar uma teoria”, afirma Ruth Trindade.

O escritor José Américo de Almeida é primo de Ruth. Uma família propensa aos desafios intelectuais.

Alguns desses sítios vivem sob ameaça contínua de vandalismo e depredação, tanto de turistas sem noção quanto das atividades de mineração e garimpo em municípios que possuem arte rupestre, como Pedra Lavrada, Junco do Seridó e Picuí (regiões de garimpo). Ruth não tem informações sobre o estado atual dos sítios que visitou nos anos 1970 (uma de suas filhas estuda reeditar o livro A Arte Rupestre nos Cariris Velhos com o estudo integral das pedras), mas crê que muitos já devem estar descaracterizados. Seu estudo é possível justamente pela documentação que ela levantou nos anos 1970.

Há muito tempo que Ruth Trindade de Almeida não segue mais as pegadas do homem remoto das Américas. Hoje vivendo no Recife, está mais preocupada em seguir as próprias pegadas: neste dezembro, ela volta ao Rio de Janeiro pela primeira vez desde que foi para a Paraíba, há meio século. “Quero ver de novo os bairros do Rio, saber como mudaram. Não estou enxergando bem, tenho uma doença que pode levar à cegueira. O médico diz que não vou ficar cega, mas não vejo bem. Quando chego nos aeroportos, não consigo mais ler aquelas placas que as pessoas seguram dizendo Fulano de Tal, agência tal. Mas a terra chama muito, quero rever o Rio.”

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