Cultura

A segunda adolescência

Viver em comunidade para fugir dos filhos é a utopia dos idosos rebeldes do filme “E Se Vivêssemos Todos Juntos?”

Para se proteger de um mundo de regras, os amigos decidem viver em comunidade no fim da vida
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Dia desses, passou no Telecine Cult um filme que fez a cabeça de 11 em cada dez adolescentes que assistiam à Sessão da Tarde no fim dos anos 80: Curtindo a Vida Adoidado.

Era o pop do pop. Um adolescente inquieto interpretado por Matthew Broderick finge estar doente para matar a aula e, junto com a namorada e um amigo, aproveitar um mundo proibido. O plano, observado tantos anos depois, não podia ser menos audacioso: uma vez livre dos adultos, o trio não fazia nada demais a não ser visitar museus, pontos turísticos, restaurantes e gastar horas na piscina falando sobre a vida. Ainda assim, era como experimentar a última fresta de luz de uma janela prestes a ser fechada, sem ter ideia para onde, como e com quem seguir dali para frente.

O modelo estava dado. De um lado, adultos criavam as regras e, de outro, os jovens as desafiavam. Era preciso dar um nó nos pais, professores e demais autoridades para se sentir minimamente vivo. O futuro era uma vida de obrigações e o presente, um instante não-renovável.

Mal sabia Ferris Bueller, o personagem de Broderick, que aquela adolescência era baba perto do que viria anos à frente. Porque, quando ganhasse o ingresso para a terceira idade, um novo espírito adolescente pediria passagem: de um lado, o mundo das regras, regulado pelos familiares economicamente ativos e, de outro, o espírito inquieto de quem não está disposto a vestir o uniforme socialmente reservado ao descanso, à docilidade, à vida privada de prazeres ou desafios.

No belo e tocante E Se Vivêssemos Todos Juntos?, filme de Stéphane Robelin em cartaz em São Paulo, essa inquietação parece clara na fala de Jeanne, personagem de Jane Fonda que a certa altura confessa: “A gente planeja tudo, mas nunca pensa no que fazer nos últimos anos de vida”.

É o temor não apenas do fim, mas do intervalo entre o meio e o fim, uma consequência direta dos avanços delineados pela longa expectativa de vida, muito maior do que as encaradas pelos antepassados. Da aposentadoria em diante há pelo menos mais um terço de vida. O que fazer neste tempo? Tricotar, pedem os filhos, os novos adultos a pajear os novos adolescentes. Mas estar vivo é não aceitar os piores sintomas da velhice. Não os sintomas do corpo, mas os sintomas socialmente definidos: quando os “adultos” passam a falar com os velhos com voz de criança, como se as novas necessidades confundissem idosos com seres incapazes de pensar, agir, sentir, se relacionar e cultivar desejos – inclusive sexuais, talvez o grande tabu a ser quebrado pela boca dos personagens.

No filme, Jeanne e outros quatro amigos se rebelam contra essa camisa-de-força manifestada na fala dos médicos e filhos dispostos a colocar os personagens numa redoma e impedir que se arrebentem. “Você não tem idade pra isso”, ouvem com frequência os personagens que, não de repente, estão proibidos de comer carne, açúcar, passear com o cachorro, tomar medicamento para ereção (uma bomba para o coração), participar de manifestações políticas, etc. O mundo já não os leva a sério, percebem, e a única saída para isso é unir força, juntando todos os amigos para viver numa espécie de república onde podem uns cuidar dos outros sem deixarem de ser levados a sério.

A ideia, quase uma utopia adolescente de comunidade, provoca risos em alguns momentos, mas não deixa de escancarar uma dolorosa e quixotesca batalha contra o fim. Uma batalha assim definida por Philip Roth no livro O Animal Agonizante: “ser velho significa também que, apesar e além de ter sido, você continua sendo”.

Esse “continuar sendo”, por ironia, é ou será em breve a grande questão da humanidade no século XXI. Porque a vida esticada comporta um pouco de tudo, inclusive doenças desconhecidas até bem pouco tempo atrás. Doenças que degradam e matam aos poucos, que levam primeiro a memória, e só depois o corpo. E comporta, sobretudo, uma volta lenta à adolescência, período de ócio criativo, auto-descoberta, carências afetivas, rebeldia contra imposições e questionamentos acerca de um lugar no tempo e espaço. Conforme envelhecemos, voltamos a teimar como crianças contra quem diz saber o que é bom para nós.

Da mesma forma que o adolescente não quer apenas sentar, estudar e se comportar, os velhos não estão dispostos apenas a tricotar nem a jogar milho aos pombos. Querem um pouco da vida que ficou para trás, como um dia, ainda adolescentes, exigiam respeito sem estar suficientemente desapegados a uma infância de liberdades vigiadas. Esse choque parece traduzido no filme quando um dos pais questiona a filha a certa altura: “por que não posso ter um cão em casa?”. Esse deslocamento mostra a fronteira tênue de uma nova realidade. Uma realidade que, com os anos, faz os filhos virarem pais e os pais virarem os filhos. É o caminho de volta a um estado sem volta.

Dia desses, passou no Telecine Cult um filme que fez a cabeça de 11 em cada dez adolescentes que assistiam à Sessão da Tarde no fim dos anos 80: Curtindo a Vida Adoidado.

Era o pop do pop. Um adolescente inquieto interpretado por Matthew Broderick finge estar doente para matar a aula e, junto com a namorada e um amigo, aproveitar um mundo proibido. O plano, observado tantos anos depois, não podia ser menos audacioso: uma vez livre dos adultos, o trio não fazia nada demais a não ser visitar museus, pontos turísticos, restaurantes e gastar horas na piscina falando sobre a vida. Ainda assim, era como experimentar a última fresta de luz de uma janela prestes a ser fechada, sem ter ideia para onde, como e com quem seguir dali para frente.

O modelo estava dado. De um lado, adultos criavam as regras e, de outro, os jovens as desafiavam. Era preciso dar um nó nos pais, professores e demais autoridades para se sentir minimamente vivo. O futuro era uma vida de obrigações e o presente, um instante não-renovável.

Mal sabia Ferris Bueller, o personagem de Broderick, que aquela adolescência era baba perto do que viria anos à frente. Porque, quando ganhasse o ingresso para a terceira idade, um novo espírito adolescente pediria passagem: de um lado, o mundo das regras, regulado pelos familiares economicamente ativos e, de outro, o espírito inquieto de quem não está disposto a vestir o uniforme socialmente reservado ao descanso, à docilidade, à vida privada de prazeres ou desafios.

No belo e tocante E Se Vivêssemos Todos Juntos?, filme de Stéphane Robelin em cartaz em São Paulo, essa inquietação parece clara na fala de Jeanne, personagem de Jane Fonda que a certa altura confessa: “A gente planeja tudo, mas nunca pensa no que fazer nos últimos anos de vida”.

É o temor não apenas do fim, mas do intervalo entre o meio e o fim, uma consequência direta dos avanços delineados pela longa expectativa de vida, muito maior do que as encaradas pelos antepassados. Da aposentadoria em diante há pelo menos mais um terço de vida. O que fazer neste tempo? Tricotar, pedem os filhos, os novos adultos a pajear os novos adolescentes. Mas estar vivo é não aceitar os piores sintomas da velhice. Não os sintomas do corpo, mas os sintomas socialmente definidos: quando os “adultos” passam a falar com os velhos com voz de criança, como se as novas necessidades confundissem idosos com seres incapazes de pensar, agir, sentir, se relacionar e cultivar desejos – inclusive sexuais, talvez o grande tabu a ser quebrado pela boca dos personagens.

No filme, Jeanne e outros quatro amigos se rebelam contra essa camisa-de-força manifestada na fala dos médicos e filhos dispostos a colocar os personagens numa redoma e impedir que se arrebentem. “Você não tem idade pra isso”, ouvem com frequência os personagens que, não de repente, estão proibidos de comer carne, açúcar, passear com o cachorro, tomar medicamento para ereção (uma bomba para o coração), participar de manifestações políticas, etc. O mundo já não os leva a sério, percebem, e a única saída para isso é unir força, juntando todos os amigos para viver numa espécie de república onde podem uns cuidar dos outros sem deixarem de ser levados a sério.

A ideia, quase uma utopia adolescente de comunidade, provoca risos em alguns momentos, mas não deixa de escancarar uma dolorosa e quixotesca batalha contra o fim. Uma batalha assim definida por Philip Roth no livro O Animal Agonizante: “ser velho significa também que, apesar e além de ter sido, você continua sendo”.

Esse “continuar sendo”, por ironia, é ou será em breve a grande questão da humanidade no século XXI. Porque a vida esticada comporta um pouco de tudo, inclusive doenças desconhecidas até bem pouco tempo atrás. Doenças que degradam e matam aos poucos, que levam primeiro a memória, e só depois o corpo. E comporta, sobretudo, uma volta lenta à adolescência, período de ócio criativo, auto-descoberta, carências afetivas, rebeldia contra imposições e questionamentos acerca de um lugar no tempo e espaço. Conforme envelhecemos, voltamos a teimar como crianças contra quem diz saber o que é bom para nós.

Da mesma forma que o adolescente não quer apenas sentar, estudar e se comportar, os velhos não estão dispostos apenas a tricotar nem a jogar milho aos pombos. Querem um pouco da vida que ficou para trás, como um dia, ainda adolescentes, exigiam respeito sem estar suficientemente desapegados a uma infância de liberdades vigiadas. Esse choque parece traduzido no filme quando um dos pais questiona a filha a certa altura: “por que não posso ter um cão em casa?”. Esse deslocamento mostra a fronteira tênue de uma nova realidade. Uma realidade que, com os anos, faz os filhos virarem pais e os pais virarem os filhos. É o caminho de volta a um estado sem volta.

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