Cultura

A sapa Cristina

Quando a gente vê alguma coisa, nem que seja uma historinha infantil, é melhor protestar do que engolir o sapo

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Faltavam dois anos para o profético 1984 do big brother George Orwell. Na calada da noite, as tropas argentinas do ditador Leopoldo Galtieri se preparavam para invadir e assustar os pinguins das ilhas Falklands. Por um milagre, o papa João Paulo II escapava de um atentado à faca na cidade de Fátima, em Portugal. Enquanto Israel retirava mais uma vez seus soldados da península do Sinai, o sandinista Daniel Ortega suspendia por 30 dias os direitos civis na Nicarágua, ameaçada de invasão pelos Estados Unidos.

No último andar de um edifício em Higienópolis, na maior cidade da América do Sul, as crianças em casa não tinham televisão porque éramos contra televisão. Não haviam ainda experimentado a primeira Coca-Cola, me lembro bem agora, porque era coisa de americano imperialista. O iogurte que tomávamos era feito em casa, sem conservantes nem colorantes. Automóvel, nem pensar! Poluía, engarrafava, brutalizava.

Era nesse clima que, lá no alto daquele apartamento da Rua Sabará, líamos para nossos filhos a revista Recreio comprada na banca do Seu Carolino que ficava na esquina de Maranhão. Era também naquele pequeno apê que escutávamos os disquinhos de uma coleção chamada Taba, histórias que contavam o segredo do Curumim, as estripulias de um macaco cismado chamado Malaquias, o mistério do Pererê na pororoca e as aventuras de Zé Prequeté.

Nas páginas da Recreio é que começa a nossa história. Era abril. O verão já tinha ficado pra trás e foi debaixo de um cobertor Parayba vermelho que comecei a ler para as crianças a aventura do dia. Era a história da Sapa Cristina. A cada parágrafo, elas iam arregalando os olhos num espanto politicamente correto de assustar. A mãe da sapa era muito rigorosa e não deixava a pobre Cristina colocar sequer as patinhas na água. Cristina estava proibida de nadar porque fazia frio, não podia brincar na lama porque sujava a casa, não podia lamber gelo porque provocava dor de garganta. E o final da história era uma sapa doente e triste porque desobedeceu a mãe.

As crianças ficaram revoltadas com aquilo, argumentando que sapa é um anfíbio que gosta e fica na água sim e não adoece por causa disso não. Indignados, sentamos os três e, armados de uma velha Remington Lettera 22, escrevemos uma carta pra Recreio. A resposta chegou em uma semana: “Recebemos sua carta de 29 de abril passado e saiba que o seu protesto está aceito. Em termos pedagógicos, reconhecemos que a história da sapa Cristina é discutível em sua proposta. Suas colocações estão corretas e continue a escrever sempre que julgar conveniente”. Era uma carta assinada por Paulette Cohen, a editora-chefe da Recreio.

Respiramos aliviados e, animados com a resposta, resolvemos escrever um outro final para a história e mandamos pra Paulette. A nossa Cristina era do balacobaco, fez a cabeça da mãe e da comunidade e viveram assim felizes para sempre. A resposta veio num bilhetinho manuscrito que guardamos até hoje: “Este é um bilhete muito afetuoso. Obrigado! A ideia me deu um imenso prazer. À turminha unida, um grande abraço da Paulette”.

Moral da história: quando a gente vê alguma coisa errada nessa vida, nem que seja uma historinha infantil, coloque a boca no trombone, proteste. Não vale a pena ficar calado engolindo sapo.

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