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A sagração de Deborah Colker

No ano em que sua companhia completa três décadas de existência, a coreógrafa e bailarina carioca leva ao palco a partitura centenária de Stravinski

A sagração de Deborah Colker
A sagração de Deborah Colker
Cosmogonia. Na versão de A Sagração da Primavera que estreou na quinta-feira 21 no Theatro Municipal do Rio, 14 dançarinos e 170 varas de bambu dão forma e vida a bactérias, animais rastejantes e seres humanos – Imagem: Flavio Colker
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Poucas obras de arte resistem tão bem ao tempo quanto A Sagração da Primavera. Composta por Igor ­Stravinski para um balé assinado por Vaslav Nijinski, a peça anteviu as convulsões sociais do século XX em uma partitura repleta de pulsações e dissonâncias que assombram plateias e fascinam artistas desde a sua estreia, em 1913.

Essa força levou coreógrafos de todo o mundo a criar suas versões para a icônica montagem. No centenário da peça, a historiadora Ismene Brown contabilizava quase 200 delas, de Martha Graham a Akram Khan, passando por Pina ­Bausch, Maurice Béjart, Paul Taylor e Mats Ek, entre outros. Este ano, é a vez de ­Deborah Colker juntar-se à lista.

Sagração, que estreou na quinta-feira 21 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, é a resposta da bailarina e coreógrafa carioca às provocações feitas por Stravinski a partir da fusão de elementos primitivistas com o erudito, resultando em quebras inesperadas do compasso musical. “Ele me ensinou a fragmentar, a misturar, a questionar as escalas dos instrumentos e os ritmos. É uma obra viva e, por isso, senti necessidade de mexer nela”, afirma.

Na versão de Deborah, a trilha sonora recebeu intervenções ousadas. Sob a direção musical de Alexandre Elias, a orquestração ganhou trechos inéditos, ampliando a duração da peça para 70 minutos. Flauta de madeira, maracá, pau de chuva, caxixi e tambores foram alguns dos instrumentos incorporados para dar forma à proposta da coreógrafa.

Grife mundial, Deborah trabalhou para o Cirque du Soleil e dirigiu a abertura dos Jogos Olímpicos no Rio

Enquanto Stravinski buscou inspiração em rituais pagãos das tradições eslavas, Deborah encontrou seu caminho ao mergulhar na cultura de povos originários e suas diferentes formas de perceber a origem do universo – as chamadas cosmogonias. Com isso, construiu uma narrativa repleta de seres míticos.

De uma viagem ao Xingu, no Centro-Oeste brasileiro, ela trouxe a história de como o Urubu-Rei concedeu o fogo ao povo do chão. Das leituras de Darcy Ribeiro veio a concepção indígena de “avó do mundo”, responsável por imaginar tudo o que conhecemos.

A esses componentes se somam outros da tradição judaico-cristã, como as figuras bíblicas de Abraão e Eva, interpretada por uma bailarina negra. A ideia de confrontar o imaginário tradicional para essa figura feminina foi sugestão do rabino Nilton Bonder, com quem Deborah já havia trabalhado em seu espetáculo anterior, Cura (2021).

Solidez. As apresentações do grupo criado por Debora Colker em 1994 costumam ter ingressos esgotados e angariar fãs no Brasil e no exterior – Imagem: Peu Fulgencio

Na dramaturgia desenvolvida pelos dois, religião e ciência fundem-se para repassar diferentes estágios das transformações dos seres vivos. Os 14 bailarinos interpretam bactérias, animais rastejantes e quadrúpedes até chegar à forma humana.

Com essa abordagem, a coreógrafa percebeu que poderia prescindir de um aspecto central da sagração original: o sacrifício de uma virgem como agradecimento pela fartura a ser conquistada com a chegada da primavera. “O sacrifício é a evolução”, diz. “Para construir o que construí­mos, a gente destruiu muita coisa, mas agora começamos a entender que temos de cuidar e nos harmonizar com a natureza.”

“A gente tem de resistir, né? Resistir é existir duas vezes”, diz a artista, sobre os tempos de pandemia

Mas o processo evolutivo não para por aí. Na peça, o elenco interage com 170 varas de bambu, cada uma com 4 metros, na cenografia desenhada por Gringo ­Cardia. Os movimentos e as formas despertadas dão vida a vários outros seres dançantes. “O bambu é a extensão do corpo do bailarino”, diz, de forma apaixonada. “Ele é flexível e tolerante. Enverga, mas não quebra. Virei uma criança experimentando fazer ocas, florestas, caçadas.” “A gente tem de resistir, né? Resistir é existir duas vezes”, diz a artista, sobre os tempos de pandemia Ao lançar mão dessas inovações, ­Deborah faz jus a uma de suas marcas registradas: o uso criativo do espaço cênico. Tem sido assim desde Velox (1995), quando colocou a companhia que leva seu nome para desafiar a gravidade ao dançar em um paredão de escalada.

A obra projetou-a como uma potência da dança mundial. De lá para cá, ela concebeu um show para o ­Cirque du ­Soleil, foi diretora de movimento da ­abertura das Olimpíadas do Rio e se prepara para estrear, em outubro, no tradicional Metropolitan Opera House, em Nova York, sua leitura para a ópera ­Ainadamar, do argentino Osvaldo Golijov. A artista também conquistou os prêmios Laurence Olivier e Benois de la Danse, considerado o Oscar da dança.

O reconhecimento pessoal caminha em paralelo ao da companhia. Em 2024, o grupo completa 30 anos. Por onde passa, ele esgota ingressos e angaria admiradores. Após estrear no Rio, a trupe sai em turnê com Sagração por diversos estados brasileiros.

Passadas as dificuldades enfrentadas na pandemia – e com patrocínio do Instituto Cultural Vale, após o fim de décadas de apoio da Petrobras –, o momento tem ares de celebração. Deborah, por sua vez, prefere resumi-lo com outras palavras: “É resistência. A gente tem de resistir, né? Resistir é existir duas vezes”. •


Outras sagrações

A obra icônica de Stravinski inspira, desde 1913, remontagens de coreógrafos consagrados

Revisão. A versão de Pina Bausch, da década de 1970, foi remontada em 2021 – Imagem: Marteen Vanden Abeele

Pina Bausch (1975)
Em sua versão para o Wuppertal Tanztheater, a artista alemã contrapõe homens e mulheres em cena, fazendo uma reflexão visceral sobre a misoginia. Em 2021, a obra foi remontada com artistas de 14 países africanos, ganhando novas leituras.

Luis Arrieta (1985)
Nesta criação para o Balé da Cidade de São Paulo, o argentino parte da violência da pulsação musical para explorar a dicotomia entre a poesia campestre e a rigidez urbana.

Dada Masilo (2020)
A coreógrafa sul-africana abre mão da partitura original e investe em uma composição percussiva ao vivo, para falar sobre rituais, sacrifícios e cura em uma fusão do contemporâneo com danças tradicionais africanas.

Publicado na edição n° 1303 de CartaCapital, em 27 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A sagração de Deborah Colker’

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