Cultura

A revolução em branco e branco

Os Beatles fechariam o ano de 1968 com o último alento ao sonho revolucionário? Não foi bem assim

No ashram de Maharishi Yogi, eles aderiram ao pacifismo, na contramão do que clamavam as ruas (Foto: Keystone Press Agency)
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No dia 5 de janeiro, Alexander Dubček dá início à chamada Primavera de Praga, a ser interrompida em agosto com a chegada dos tanques russos à capital tcheca. Nos últimos dias de janeiro, tropas do Vietnã do Norte e do vietcongue lançam a Grande Ofensiva do Tet, alusiva ao Ano-Novo vietnamita.

O reverendo Martin Luther King, líder da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, é assassinado em Memphis, no Tennessee, no dia 4 de abril. Começa na França, e vai se espalhar pelos territórios universitários do mundo todo, a formidável mobilização estudantil traduzida em choques mortais com a polícia.

O governo francês fraqueja e Charles de Gaulle é chamado como salvação. Na noite de 5 de junho, o virtual candidato democrata à Casa Branca, Robert Kennedy, é assassinado na Califórnia. Em 26 de junho, a “passeata dos 100 mil” no Rio transforma-se no mais expressivo protesto contra a ditadura civil-militar instalada quatro anos antes no Brasil.

Centenas de estudantes são fuzilados por tropas do Exército em confronto na Praça Tlatelolco, na Cidade do México, às vésperas da Olimpíada, em outubro. Nos Jogos, dois atletas americanos fazem a saudação dos Panteras Negras ao receberem suas medalhas. A 4 de novembro, o republicano Richard Nixon, ex-assecla de Joe McCarthy, é eleito presidente com a mais ínfima diferença de votos: 0,7%.

1968 foi o ano em que ninguém teve descanso. As reviravoltas políticas eram apenas a superfície de outras malaises mais profundas. A vida social entrava em convulsão. Ano de sonho e pesadelo, de esperança e de desilusão, de acertos e de desenganos, de frustrações e de encontros.

Mas quem haveria de exprimir de forma mais vital, incandescente, borbulhante os dilemas do momento senão a música pop, a linguagem irrequieta da juventude? O rock, mais do que qualquer outra manifestação artística, tinha alcance e vigor para acompanhar, decifrar e até antecipar a sociedade humana em suas múltiplas cambalhotas.

No dia 22 de novembro, o mundo prendeu o fôlego: estava para sair mais um álbum dos Beatles. Era sempre assim: cada novidade dos Fab Four justificava a expectativa. Mais ainda naquele 1968, que não poderia acabar sem antes ouvir aquela que seria, com certeza, a sua mais perfeita tradução.

Um álbum duplo, dois discos de vinil, com uma capa toda branca concebida pelo designer Richard Hamilton, em clamoroso contraste com as anteriores capas policromáticas e psicodélicas de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band e Revolver. A única intromissão era o nome da banda em relevo – e tipografia Helvetica.

Os Beatles passaram em branco – desculpem o trocadilho – na revolução que os enragésambicionavam. Não quiseram empunhar a bandeira da insurreição e do quebra-quebra. A expectativa era de que o Álbum Branco promovesse um estrépito semelhante ao das barricadas.

A revolução iria adquirir, enfim, sua soundtrack? Os críticos de esquerda consignaram que uma banda simulando o solfejo de passarinhos (Blackbird) ou observando macacos copulando em céu aberto numa estrada da Índia (Why Don’t We Do It On The Road?) não estava exatamente contribuindo para a causa dos pobres e oprimidos.

No entanto, o Álbum Branco promoveu, sim, outra revolução. A sua: crítica e público, em unanimidade clamorosa, saudaram uma obra-prima definitiva, aquele que era o mais complexo e completo trabalho da banda até então, e para sempre.

Álbum Branco estava para os moços de Liverpool assim como a Nona de Beethoven estava para a música. É um extraordinário esforço sinfônico. De fato, as 30 faixas conseguiam a proeza de sintetizar cadências, ressonâncias e ritmos que iam do ska ao eletrônico Stockhausen, do rhythm & blues ao rock progressivo, da balada a Chuck Berry, do caos ao água com açúcar. No Observer, Tony Palmer decretou que Lennon e McCartney eram “os maiores compositores desde Schubert”, ressaltando que o júbilo de fazer música tinha finalmente prevalecido sobre um certo esnobismo cultural da dupla.

Rolling Stone, que se firmara como o cânone da cultura pop, seguiu o conselho que Nelson Rodrigues dera no futebol: o pênalti é tão importante que quem deveria bater é o presidente do clube. Para comentar o lançamento do ano, a revista convocou seu fundador, diretor e CEO, Jann S. Wenner.

Quem é a mais importante figura do rockBob Dylan, afirma Wenner. E quem encarna melhor a ideia de banda de rock? Os Stones, diz ele. No entanto, são os Beatles “o mais perfeito produto e resultado do que o rock-n’-roll significa e incorpora”. Só os Beatles seriam capazes “de produzir algo tão maravilhoso e só os Beatles serão sempre capazes de nos maravilhar”. A profecia ficaria, como se sabe, prejudicada.

O mais rico, mais criativo, mais fecundo momento de uma joint venture que começara em 1960, num improvável porão de Liverpool, a culminância de uma afinação sempre harmoniosa nos acordes e nos compassos, dava em 1968 os primeiros sinais de uma paradoxal fissura na vida real do quarteto.

A concepção do Álbum Branco remete à romaria que os Beatles fizeram à Índia nos primeiros meses de 1968 à sombra do carisma místico do Maharishi Mahesh Yogi, que tinham conhecido em Londres. O Maharishi ganhou as honras de “guru dos Beatles” – daqueles que tinham adquirido, eles próprios, o fetiche de gurus de milhões de teenagersdescabelados.

De fevereiro a abril do revolto ano, os quatro cavaleiros do após-calipso submergiram, no ashram de Rishikesh, aos pés do Himalaia, à disciplina resignada da meditação transcendental, que iria se refletir posteriormente na postura gandhiana do grupo na contramão do apelo à revolução ao estilo violento dos événements de mai.

Na verdade, o irrequieto e pragmático Ringo só ficou uma semana no ashram, Paul aguentou duas, John ficou até o fim e George, o mais fervoroso de todos, talvez estivesse lá até hoje, se vivo fosse. O estágio ascético iria inspirar Lennon no oratório pacifista Revolution 1.

Em maio, estavam os quatro reunidos no estúdio novo da Abbey Road para iniciar as gravações que só terminariam no fim de outubro. A esplêndida confluência de energia criativa conseguida na música, nunca antes tão complexa e acabada, não conseguia mais disfarçar que a redoma daquela amizade risonha e juvenil começava a trincar.

Ringo deu uma sumida durante as sessões, o produtor George Martin também pediu um tempo, mas o verdadeiro estresse veio da parte de John, agora sob a jurisdição da categórica Yoko Ono.

Um dos códigos da boa convivência do quarteto vetava a presença das parceiras dos músicos nos ensaios e nas gravações, no entanto Yoko, com as bênçãos de John, passou a trafegar como se fosse o quinto dos Beatles.

Fez duo com Lennon em The Continuing Story of Bungalow Bill, e diz coisas e produz ruídos em Revolution 9, junto com John, Harrison e George Martin. Já que o protocolo fora quebrado, Maureen Starkey, a sra. Ringo Star, ganhou direito a backing vocal em Bungalow Bill, e Pattie, a sra. George Harrison, pôde cantarolar ao fundo de Birthday.

1968 encerrava um sonho e a pulsão vertiginosa do Álbum Branco deixava o futuro em suspenso. A harmonia dos Beatles começava a estilhaçar. Os quatro tomariam diferentes caminhos. Logo, logo, John e Yoko estariam deitados numa cama, à frente das câmeras – e do mundo –, pedindo: “Deem uma chance à paz”. Entre os que não estavam dispostos a dar ouvidos ao apelo estava aquele garoto que, dez anos depois, fuzilaria John num ameno fim de tarde no Central Park de Nova York.

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