Cultura
A revolução do streaming atingiu o pico
A melhora da pandemia e a concorrência acirrada leva as plataformas a diminuir o ritmo de crescimento


O fim da onda do entretenimento doméstico, que foi alimentada pela pandemia e impulsionou o crescimento da Netflix e de outros serviços, revelou uma verdade inquietante: a revolução do streaming atingiu o pico.
O mercado está enfrentando uma tempestade perfeita. Após uma década ao longo da qual conquistaram assinantes com facilidade, as empresas de streaming passaram a ter um crescimento drasticamente mais lento. De um lado, o aumento da concorrência insuflou uma insustentável guerra por conteúdo. De outro, os orçamentos familiares apertados fazem com que os consumidores cortem algumas opções de entretenimento.
Os longos períodos de isolamento social forneceram as condições perfeitas para o crescimento estratosférico do streaming. A Netflix teve, em 2020, um crescimento anual recorde de 37 milhões de assinantes. A então recém-chegada Disney+ atingiu 100 milhões em 16 meses, façanha que a rival levou uma década para alcançar. Investidores maravilhados levaram os valores de mercado dessas empresas a picos históricos.
Mas a Netflix voltou à Terra no mês passado. A empresa prevê, globalmente, apenas 2,5 milhões de novos assinantes no primeiro trimestre, seu pior início de ano em mais de uma década. Abalados, os investidores diminuíram em quase 300 bilhões de dólares (1,54 trilhão de reais) o valor de mercado combinado das duas gigantes.
A Netflix tem atuado, tradicionalmente, como um indicador para a indústria. A desaceleração de seu crescimento, depois da autoproclamada mais forte oferta de conteúdo de todos os tempos, com os recordistas Round 6, Alerta Vermelho e Não Olhe para Cima, levanta questões sobre o futuro do streaming. Analistas da MoffettNathanson, há muito descrentes da Netflix, definiram a previsões como “preocupantes”.
O modelo de “maratonas” da Netflix, outrora revolucionário, está se mostrando um pesadelo contábil. A empresa aumentará os gastos em conteúdo para cerca de 19 bilhões de dólares este ano, e há mais 23 bilhões de dólares em seu balanço para custos de conteúdo de longo prazo. Isso sem falar em 14,8 bilhões de dólares em dívidas de longo prazo.
A Disney, que também possui a operação esportiva ESPN e o serviço de streaming Hulu, bem como os negócios de cinema Marvel, Pixar, Star Wars e Disney, está gastando 33 bilhões de dólares com conteúdo este ano.
As empresas têm gastado bilhões em produções, mas o consumidor não dá conta de tanta oferta
Mas, ao eliminar os testes gratuitos de 30 dias adorados pelos maratonistas, a Netflix está descobrindo que nem mesmo seus enormes gastos são suficientes para manter a fidelidade dos clientes. Muitos cancelam a assinatura depois de assistir a sucessos de grande orçamento.
“Round 6? Isso é tão do último trimestre”, disse o analista Michael Nathanson, em nota aos investidores no mês passado, depois que as ações da gigante do streaming sofreram sua maior queda em uma década, com The Witcher, feito na véspera de ano-novo.
A nova tendência, adotada pela Disney+ e pela Amazon Prime Video é lançar episódios semanais dos programas de sucesso, para aumentar o prazo de validade do conteúdo e evitar que os assinantes cancelem após uma maratona de alguns hits imperdíveis. No ano passado, a Apple abandonou sua interessante oferta de um ano de acesso gratuito ao serviço de streaming para quem comprasse um dispositivo da marca.
“Além de uma onda de novos serviços de assinatura bem financiados, agora também há mais opções de baixo custo ou nenhum, financiadas por publicidade”, disse Dominic Sunnebo, do grupo de pesquisa Kantar. “Os serviços pagos, de repente, já não são mais tão baratos.”
Serviços mais recentes, como o HBO Max, estão, entretanto, mostrando um crescimento inicial relativamente forte. E a Disney+, que decepcionou os investidores em novembro, quando seus resultados do último trimestre do ano revelaram o menor número de novos assinantes desde seu lançamento, mostrou uma recuperação notável na semana passada, superando as expectativas de Wall Street.
“Por enquanto, a Disney está defendendo sua posição, mas este não é o passeio no parque que se poderia esperar de uma empresa com um estoque de conteúdo já repleto de sucessos de bilheteria”, disse a analista Sophie Lund-Yates, da Hargreaves Lansdown. As ações da Disney subiram quase 10%, enquanto os investidores suspiravam aliviados, esperando que os dias felizes do crescimento do streaming ainda não tenham acabado.
A nova era de ouro da tevê está, de certa forma, se mostrando uma coisa boa demais, com o excesso de opções começando a causar fadiga entre os consumidores. “O mercado ficou muito mais cheio nos últimos anos e não vai suportar muitos outros serviços ”, disse Richard Broughton, analista da Ampere. “Os consumidores têm mais serviços do que poderiam precisar.”
Há indícios de que os consumidores estão cada vez mais seletivos sobre quantos serviços desejam gerenciar e pagar. A Kantar descobriu que um quinto dos alemães que assinaram um novo serviço de vídeo sob demanda nos últimos três meses de 2021 cancelou um dos que já possuía.
“O cancelamento planejado aumenta exponencialmente quando as pessoas ultrapassam três serviços”, disse Sunnebo. “Os consumidores não vão continuar gastando para sempre: há um teto, e ele está ficando cada vez mais próximo. Acho que ainda não atingimos o pico de streaming em termos de visualização, mas estamos chegando perto do que as pessoas estão dispostas a pagar.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1197 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O streaming cai das nuvens”
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