Cultura

A revolução de salto alto

‘Bem Amadas’ é retrato certeiro das mudanças de postura assumidas por pais e filhos entre a Guerra Fria e a Guerra ao Terror

O salto-alto levou Madeleine para uma outra era
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No meio do caminho havia uma História. Uma História com H maiúsculo: tanques de guerra cortavam as ruas de Praga, capital da então Tchecoslováquia, para interromper uma certa primavera que prometia combater os vestígios de autoritarismo espalhados pela Europa desde o fim da Segunda Guerra. A invasão, em setembro de 1968, adiaria por mais 20 anos o encerramento do período sombrio, mas não impediu Madeleine, personagem de Ludivine Sagnier em Bem Amadas, de atravessar a rua, enquadrar o marido infiel e avisar que outra mudança estava em curso: a de sua história.

Diferentemente do que ocorre em outros filmes de Christophe Honoré, quando os personagens voltam ao abrigo da casa dos pais após a separação, Madeleine, diante do terror da capital tcheca, coloca a filha ainda criança no colo, abandona o marido imprudente e decide recomeçar do zero a vida em Paris, sua cidade.

Nem por isso se viu livre da História, presente em cada passo desde que colocou, pela primeira vez, o sapato de salto alto e passou a viver como prostituta. Em Bem Amadas, o processo de liberalização dos costumes, culminado na revolução sexual dos estranhos anos 60, parece assimilado no objeto-suporte que faz de Madeleine a dona única do próprio destino – ela, mais que ninguém, saberia a dor e as delícias de ser o que é, como na música.

Muitos anos depois, já sob as vestes da mãe envelhecida vivida por Catherine Deneuve, ela explicaria que não era uma mulher de vida fácil. O seu período histórico é que era “fácil demais”.

O que viveu dali em diante daria um nó para quem vê na bagunça dos dias atuais (uns chamam de “decadência”) um rompimento de uma ordem assentada. Madeleine não deixou de ser uma mãe cuidadosa ao longo da vida; nem por isso viu no segundo casamento o encerramento da própria história. Pelo contrário: deu vida a formas de relacionamento, digamos, pouco ortodoxas para o padrão convencional. A confusão daqueles “dias fáceis” parece não importar a quem testemunhou ditaduras, imposições e autoritarismo – e gritou contra isso em Maio de 68, na Primavera de Praga ou em algum país subjugado da América Latina. Opressora, a História era em si absurda, e seria inútil buscar sentido nas histórias com h minúsculo. Em outras palavras: “se o mundo me impõe uma ordem, nada mais justo do que assimilar minhas próprias desordens, morais e afetivas”.

Dessa forma, Madeleine parecia conviver sem muitos traumas nem questionamento com as próprias incertezas (a monogamia, para ela, era um cerco tão beligerante quando as tropas russas). Até que chega a vez da filha Véra (Chiara Mastroianni em idade adulta) se deparar com as próprias escolhas. As escolhas de seu tempo e sua História.

No meio dos anos 90, já sem necessidade de subir em salto alto para ser notável, Véra viverá um drama que, nas décadas de seus pais, soaria como um drama pueril. Num intervalo entre as ditaduras da Guerra Fria e da Guerra ao Terror, rompe uma paz aparente com questionamentos interiores: um relacionamento naufragou por falta de amor. E ponto. E outro não tem vazão por não fazer sentido. Véra está apaixonada por Henderson (Paul Schneider), um amigo gay.

O drama levado às últimas consequências parece simbólico para uma geração que assumiu o lugar dos pais com uma missão cruel: colocar ordem em um mundo gerado na desordem (a desordem das guerras, das revoluções de comportamento, da fragmentação familiar, entre tantas). São os filhos de pais separados iludidos com a tarefa de não repetir os mesmos (des) caminhos. É como se um pecado tivesse de ser purgado pela geração seguinte. Na Europa dos anos 1960, as pessoas morriam asfixiadas pelo cerceamento de direitos civis, sociais e políticos (e não só os habitantes do leste comunista). Na mesma Europa dos anos 1990, estavam cercadas pela culpa, pelos ciúmes e sentimentos de posse – o que, no filme, parece encarnado no personagem de Louis Garrel.

Num dos muitos diálogos arrebatadores do filme, Véra ouve do amigo gay que algo muito ruim deveria acontecer com eles após anos de imprudência. E a punição à ousadia de se usar salto alto vermelho está em todos os cantos: do vazio à depressão, passando pelos fantasmas das doenças sexualmente transmissíveis que dizimavam multidões como tanques de guerra.

Em outro diálogo, Véra fala a Henderson como seria seu amante ideal. Para ela, ele deveria responsável, bem-sucedido, atlético, saudável, não-fumante, sem vícios enfim. É quando o amigo responde com uma pergunta: “o que você quer é um bundão?”

É como uma confissão: se antes a felicidade estava associada à liberdade, e a imprudência fosse decorrência desse (des) caminho, na geração seguinte estava ligada à ordem, à busca de sentidos, à catalogação de grupos, à definição de papéis. Esse novo ideal de vida talvez explique as ondas moralistas observadas nos dias atuais: o retorno do fanatismo religioso, a ética da austeridade, a sobriedade, o fetiche pela segurança, o asco ao que é estranho. Nessa busca pela ordem, se os amores não fazem sentido, é melhor expurgá-los: antes uma história não-vivida que uma história sem razão. A postura é oposta àquela assumida por quem esteve no epicentro das revoluções anteriores, quando tudo o que estava ao alcance precisava ser agarrado.

Por isso o diálogo latente entre mãe e filha (Deneuve e Mastroianni são também mãe e filha na vida real) parece invertido: o desespero dos filhos jamais fará sentido aos pais que deram forma a amores possíveis

Em Não Minha Filha, Você Não Irá Dançar, filme anterior de Honoré, a mesma Chiara Mastroianni interpretava uma mulher livre que arcava com escolhas erradas. A culpa provinha de sua incapacidade de ser uma boa mãe, ainda que tivesse cumprido todo o script que se esperava dela. A reprovação era dada pelos próprios filhos, ávidos por cobrar dos adultos uma postura minimamente…confiável. Em Bem Amadas, a mesma atriz vive uma mulher livre dos filhos, mas não das convenções: na era do terror, também não poderia dançar; a ordem agora era o luto e a retidão. Véra, com seu olhar cansado e seus cálculos insuportáveis sobre os próprios passos, é a expressão mais fiel de um tempo de aflições.

No meio do caminho havia uma História. Uma História com H maiúsculo: tanques de guerra cortavam as ruas de Praga, capital da então Tchecoslováquia, para interromper uma certa primavera que prometia combater os vestígios de autoritarismo espalhados pela Europa desde o fim da Segunda Guerra. A invasão, em setembro de 1968, adiaria por mais 20 anos o encerramento do período sombrio, mas não impediu Madeleine, personagem de Ludivine Sagnier em Bem Amadas, de atravessar a rua, enquadrar o marido infiel e avisar que outra mudança estava em curso: a de sua história.

Diferentemente do que ocorre em outros filmes de Christophe Honoré, quando os personagens voltam ao abrigo da casa dos pais após a separação, Madeleine, diante do terror da capital tcheca, coloca a filha ainda criança no colo, abandona o marido imprudente e decide recomeçar do zero a vida em Paris, sua cidade.

Nem por isso se viu livre da História, presente em cada passo desde que colocou, pela primeira vez, o sapato de salto alto e passou a viver como prostituta. Em Bem Amadas, o processo de liberalização dos costumes, culminado na revolução sexual dos estranhos anos 60, parece assimilado no objeto-suporte que faz de Madeleine a dona única do próprio destino – ela, mais que ninguém, saberia a dor e as delícias de ser o que é, como na música.

Muitos anos depois, já sob as vestes da mãe envelhecida vivida por Catherine Deneuve, ela explicaria que não era uma mulher de vida fácil. O seu período histórico é que era “fácil demais”.

O que viveu dali em diante daria um nó para quem vê na bagunça dos dias atuais (uns chamam de “decadência”) um rompimento de uma ordem assentada. Madeleine não deixou de ser uma mãe cuidadosa ao longo da vida; nem por isso viu no segundo casamento o encerramento da própria história. Pelo contrário: deu vida a formas de relacionamento, digamos, pouco ortodoxas para o padrão convencional. A confusão daqueles “dias fáceis” parece não importar a quem testemunhou ditaduras, imposições e autoritarismo – e gritou contra isso em Maio de 68, na Primavera de Praga ou em algum país subjugado da América Latina. Opressora, a História era em si absurda, e seria inútil buscar sentido nas histórias com h minúsculo. Em outras palavras: “se o mundo me impõe uma ordem, nada mais justo do que assimilar minhas próprias desordens, morais e afetivas”.

Dessa forma, Madeleine parecia conviver sem muitos traumas nem questionamento com as próprias incertezas (a monogamia, para ela, era um cerco tão beligerante quando as tropas russas). Até que chega a vez da filha Véra (Chiara Mastroianni em idade adulta) se deparar com as próprias escolhas. As escolhas de seu tempo e sua História.

No meio dos anos 90, já sem necessidade de subir em salto alto para ser notável, Véra viverá um drama que, nas décadas de seus pais, soaria como um drama pueril. Num intervalo entre as ditaduras da Guerra Fria e da Guerra ao Terror, rompe uma paz aparente com questionamentos interiores: um relacionamento naufragou por falta de amor. E ponto. E outro não tem vazão por não fazer sentido. Véra está apaixonada por Henderson (Paul Schneider), um amigo gay.

O drama levado às últimas consequências parece simbólico para uma geração que assumiu o lugar dos pais com uma missão cruel: colocar ordem em um mundo gerado na desordem (a desordem das guerras, das revoluções de comportamento, da fragmentação familiar, entre tantas). São os filhos de pais separados iludidos com a tarefa de não repetir os mesmos (des) caminhos. É como se um pecado tivesse de ser purgado pela geração seguinte. Na Europa dos anos 1960, as pessoas morriam asfixiadas pelo cerceamento de direitos civis, sociais e políticos (e não só os habitantes do leste comunista). Na mesma Europa dos anos 1990, estavam cercadas pela culpa, pelos ciúmes e sentimentos de posse – o que, no filme, parece encarnado no personagem de Louis Garrel.

Num dos muitos diálogos arrebatadores do filme, Véra ouve do amigo gay que algo muito ruim deveria acontecer com eles após anos de imprudência. E a punição à ousadia de se usar salto alto vermelho está em todos os cantos: do vazio à depressão, passando pelos fantasmas das doenças sexualmente transmissíveis que dizimavam multidões como tanques de guerra.

Em outro diálogo, Véra fala a Henderson como seria seu amante ideal. Para ela, ele deveria responsável, bem-sucedido, atlético, saudável, não-fumante, sem vícios enfim. É quando o amigo responde com uma pergunta: “o que você quer é um bundão?”

É como uma confissão: se antes a felicidade estava associada à liberdade, e a imprudência fosse decorrência desse (des) caminho, na geração seguinte estava ligada à ordem, à busca de sentidos, à catalogação de grupos, à definição de papéis. Esse novo ideal de vida talvez explique as ondas moralistas observadas nos dias atuais: o retorno do fanatismo religioso, a ética da austeridade, a sobriedade, o fetiche pela segurança, o asco ao que é estranho. Nessa busca pela ordem, se os amores não fazem sentido, é melhor expurgá-los: antes uma história não-vivida que uma história sem razão. A postura é oposta àquela assumida por quem esteve no epicentro das revoluções anteriores, quando tudo o que estava ao alcance precisava ser agarrado.

Por isso o diálogo latente entre mãe e filha (Deneuve e Mastroianni são também mãe e filha na vida real) parece invertido: o desespero dos filhos jamais fará sentido aos pais que deram forma a amores possíveis

Em Não Minha Filha, Você Não Irá Dançar, filme anterior de Honoré, a mesma Chiara Mastroianni interpretava uma mulher livre que arcava com escolhas erradas. A culpa provinha de sua incapacidade de ser uma boa mãe, ainda que tivesse cumprido todo o script que se esperava dela. A reprovação era dada pelos próprios filhos, ávidos por cobrar dos adultos uma postura minimamente…confiável. Em Bem Amadas, a mesma atriz vive uma mulher livre dos filhos, mas não das convenções: na era do terror, também não poderia dançar; a ordem agora era o luto e a retidão. Véra, com seu olhar cansado e seus cálculos insuportáveis sobre os próprios passos, é a expressão mais fiel de um tempo de aflições.

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