Cultura

A Revolução de Jacob Gorender

Dele se lembrará como um herói do povo brasileiro, desde as batalhas na Itália até sua dedicação cotidiana como militante comunista

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Uma impressionante trajetória de vida. Nasceu em Salvador em 1923, morreu no dia 13 de junho deste ano. Filho do judeu ucraniano Nathan Gorender, socialista e antissionista, Jacob Gorender viveu sua infância nos cortiços pobres da capital baiana. Fez o ginásio e o preparatório no Ginásio da Bahia, entre 1933 e 1940. Ingressa na Faculdade de Direito de Salvador, onde estudou entre 1941 e 1943. Em 1942, integra a célula universitária, junto com Mário Alves e Ariston Andrade, do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na Bahia, conduzida por Giocondo Dias. Mário Alves será amigo e companheiro dele por toda a vida. Nos primeiros anos da década de 40, Gorender foi repórter de O Imparcial e de O Estado da Bahia.

Seguindo orientação do PCB, e com entusiasmo, integra a Força Expedicionária Brasileira (FEB), chegando à Itália em setembro de 1944. Participa dos ataques a Monte Castelo e Montese, e de outros combates até o fim da guerra. Como se sabe, os comunistas se bateram nas ruas pela participação do Brasil na guerra contra o nazifascismo, luta intensificada com os afundamentos de navios nacionais, no início de 1942. Acampado em Pistoia, na Toscana, Gorender freqüentou a sede do Partido Comunista Italiano (PCI), chegando então a assistir discurso de Palmiro Togliatti, secretário-geral do partido.

Ao retornar da guerra, não retoma os estudos universitários, envolvendo-se inteiramente com a luta política, comunista assumido. Torna-se quadro do PCB, que entre 1945 e 1947 experimentou efêmera legalidade. No fim de 1946, no Rio de Janeiro, participa da redação do semanário comunista A Classe Operária e do secretariado metropolitano do PCB. Entre 1951 e 1953, é transferido para São Paulo, e integra o Comitê Estadual do PCB, ao lado do colega baiano Carlos Marighella. Segue para o Rio de Janeiro, participa da organização dos “Cursos Stálin” para a militância do partido e trabalha no diário comunista Imprensa Popular.

Convive, então, com a chamada geração de ferro stalinista, integrada por, entre outros, Carlos Marighella, João Amazonas, Diógenes de Arruda Câmara, Pedro Pomar. Essa geração, como reconhecerá Gorender mais tarde, se entregou de olhos fechados e sem maiores inquietações teórico-intelectuais ao modelo de revolução proposto pelo PCB, revolução cuja modelo provinha da URSS.

Esse modelo de revolução é reafirmado pelo IV Congresso do PCB, em novembro de 1954: Brasil semicolonial e semifeudal, luta por um governo democrático e popular dirigido pela Frente Democrática de Libertação Nacional. Era a revolução em duas etapas: a primeira com a participação da burguesia nacional. A segunda, socialista. Em 1955, integra a segunda turma enviada à Escola Superior de Quadros do PCURSS, onde passa a dominar o russo.

Foi nessa escola que conheceu a também militante Idealina da Silva Fernandes, com quem manteve um amor de vida inteira. Em Moscou toma conhecimento parcial, em 1956, das atrocidades stalinistas. Tais revelações causaram uma balbúrdia no movimento comunista e apressam a volta de Gorender ao Brasil, em 1957.

Ele, junto com Alberto Passos Guimarães, Mário Alves, Armênio Guedes, sob chamado de Giocondo Dias, e com autorização de Prestes, elabora a Declaração de Março de 1958, que reorientava a linha do PCB, até ali esquerdista. Foi uma espécie de revolução democrática no partido. Defendia-se a chegada ao poder pela via pacífica e no caminho da democracia. O esquerdismo já havia sido derrotado com o apoio que o partido dera a Kubitscheck. A Declaração de Março era um substitutivo à orientação oficial, elaborado à margem do Comitê Central, onde forças stalinistas mantinham as posições tradicionais, como João Amazonas, Arruda Câmara, Pedro Pomar e Maurício Grabois. E foi vitoriosa. Em setembro de 1960, é eleito membro do Comitê Central.

Em 1962, na IV Conferência do partido, Marighella, Mário Alves e Manuel Jover Telles , já membros da Executiva, criticam os desvios de direita da direção partidária, propõem a substituição do governo por outro nacionalista e democrático, sem conciliadores. Gorender era parte discreta dessa insubmissão, sem que, no entanto, se apresentasse qualquer modificação no caráter da revolução. Essa facção de esquerda começava a sentir a influência da radicalização da revolução mundial e dos trabalhadores – a Revolução Cubana, de 1959, era um sinal muito forte disso tudo.

Em 1964, continua situado à esquerda da orientação oficial do partido, junto com Apolônio de Carvalho, Marighella, Câmara Ferreira, Mário Alves e Miguel Batista dos Santos, entre outros. O partido, no entanto, continua sob hegemonia de Luís Carlos Prestes. Entre 1965-1966, a esquerda foi sendo expulsa sem chance de defender suas posições no VI Congresso, de dezembro de 1967.

Em abril de 1968, Gorender, ao lado de Mário Alves e Apolônio de Carvalho, entre outros, funda o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Pretendia a renovação revolucionária do antigo PCB. Em janeiro de 1970, são presos os principais dirigentes do novo partido, entre os quais Gorender. Mário Alves, principal dirigente, é morto sob torturas inomináveis, no Rio de Janeiro, no quartel da Barão de Mesquita, onde a repressão matou tanta gente.  Gorender, preso, torturado, começa a revelar-se como um raro intelectual marxista à margem dos saberes oficiais acadêmicos, autodidata e pesquisador rigoroso.

Na prisão, esboça a proposta de transição do escravismo ao capitalismo no Brasil. Em liberdade, passa a se dedicar, com o apoio de amigos, à obra que representará uma espécie de revolução copernicana – na expressão de Mário Maestri – na compreensão do País: O escravismo colonial, lançada pela editora Ática em 1978, e que mereceu nova e bela edição da Fundação Perseu Abramo, em 2010. Insurge-se, à direita e à esquerda, contra as posições interpretativas sobre a escravidão no Brasil, nenhuma delas capaz de compreender o escravismo como um todo, como um fenômeno que conformou um modo de produção com características próprias, elucidado por ele.

A formação social escravista conheceu, para Gorender, duas grandes formas de produção: o escravismo colonial, apoiado no trabalho coercitivo e na propriedade latifundiária, com fraca acumulação, e o modo de produção de pequenos cultivadores não escravistas, voltado para a subsistência e que vendia parte da produção. Nada de feudalismo ou restos de feudalismo, como pretendia uma interpretação então vigente. E nada também de uma simples subordinação do escravismo ao capitalismo comercial global. Um modo de produção específico, anterior ao capitalismo, e que enseja acumulação originária que apoiou, mais tarde, a expansão capitalista.  Essa interpretação da escravidão brasileira, naturalmente, refuta, em essência, a visão anterior do próprio PCB e de alguns de seus intelectuais, que davam o Brasil como semicolonial e semifeudal. O escravismo colonial associa capitalismo e o sistema escravocrata. Como diz Flávio Jorge Rodrigues da Silva, ao afirmar que o capitalismo brasileiro, no processo de industrialização do País, apoiou-se na acumulação de capital original nascida, sobretudo, do escravismo, Gorender reforça o discurso do movimento negro contemporâneo de que capitalismo e racismo são formas de opressão e exploração interligados pelo sistema escravocrata.

Escreverá vários outros livros, entre os quais Combate nas Trevas, um trabalho essencial sobre as organizações armadas que enfrentaram a ditadura. Em A escravidão reabilitada, em que ele pugna com seus críticos, seu discurso antirracista se intensifica, ao considerar a Abolição da Escravidão como a única revolução social ocorrida no Brasil até então.  Dele se lembrará como um herói do povo brasileiro, desde as batalhas na Itália até sua dedicação cotidiana como militante comunista. Deixa, sobretudo, o legado extraordinário de O Escravismo colonial, sem o qual é impossível entender a escravidão e o Brasil. Os baianos e os brasileiros jamais o esquecerão. Pela vida de militante. E pela notável obra teórica.

 

Referência bibliográfica:

GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2010. 650 p. (particularmente, o texto introdutório de Mário Maestri – O escravismo colonial: a revolução copernicana de Jacob Gorender, e o texto que abre o livro, Mais que uma homenagem, de Flávio Jorge Rodrigues da Silva, diretor da Fundação Perseu Abramo e dirigente da Coordenação Nacional de Entidades Negras.)

 

*jornalista e escritor

WWW.emilianojose.com.br

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