Cultura
A religião neoliberal
‘Dominância Financeira e Privatização das Finanças Públicas no Brasil’ rema contra o consenso que nos aprisiona
A gestão da moeda e das finanças públicas talvez nunca tenha, na história das modernas sociedades ocidentais, estado submetida a tamanha mistificação como está instalada nos dias que correm. Aprisionada no teto de gastos e nas aporias do modelo de Banco Central independente, a administração da coisa pública nas searas monetária e financeira virou, de forma ampla, matéria de “especialistas”.
Esses especialistas ministram seus conhecimentos técnicos com o objetivo de promover o bem comum, numa postura que se opõe à daqueles que, supostamente, querem se apoderar do Estado para beneficiar-se individualmente. Essa paranoia nasce com os primeiros movimentos de teóricos como F. Hayek, ainda nos anos 1930.
O recém-lançado Dominância Financeira e Privatização das Finanças Públicas no Brasil, organizado por Rudinei Marques e José Celso Cardoso Jr., pretende nos lembrar que a verdade revelada deixou de servir como guia inequívoco de orientação ética ao homem desde os primórdios do século XV, no alvorecer do capitalismo comercial e da Renascença, sua meia-irmã. Para tanto, dedica-se a apresentar ao leitor de que forma a finança pública, a dívida pública e a gestão da moeda foram capturadas, no Brasil contemporâneo, por aqueles que se arvoram no direito e nos prestam o abnegado (des)serviço de nos livrar a todos dos males causados por uma gestão pública que esteja ancorada em decisões de ordem política.
O recurso mais intenso à violência do Estado para impor a razão neoliberal aos recalcitrantes, que insistem em querer viver em uma democracia liberal, faz-se mais visível, em conluio com a voz altissonante dos vencedores, comandantes da mídia, ou daqueles que não sabem bem quem são os culpados por sua vida se tornar a cada dia pior. E, exatamente por não o saberem, aliam-se, de maneira raivosa, àqueles que os ameaçam de forma dissimulada.
DOMINÂNCIA FINANCEIRA E PRIVATIZAÇÃO DAS FINANÇAS PÚBLICAS NO BRASIL. Por Rudinei Marques e José Celso Cardoso Jr. (org.). Fonacate, (Disponível para download)
Contra esse consenso mal dissimulado, o livro de Marques e Cardoso Jr. apresenta-se como uma voz dissonante, justamente por ser constituído por artigos críticos dessa ordem econômica e social. Ao tratar com maestria as estratégias sutis (ou nem tanto) que urdem as formas em que hoje se faz a gestão pública da moeda, do crédito e das finanças públicas, o livro nos conta outra história, das possibilidades de retomada das finanças públicas pela política, ou pelo político, nos termos da filósofa belga Chantal Mouffe.
Ou seja, vislumbram-se, a partir dessa leitura, novas e promissoras possibilidades – e até mesmo a necessidade – de que a gestão das finanças públicas, da dívida pública e da moeda volte a ser feita a partir de antagonismos que se resolvem no campo da política e nos espaços participativos de uma sociedade democrática.
Sociedade ideal esta que maneja seus instrumentos para alcançar o maior nível possível de bem-estar para todos os cidadãos e não nos escaninhos das forças econômicas que, de forma nem sempre visível, manejam as decisões no campo das finanças públicas de modo a locupletar-se e manter, se possível para sempre, as estruturas que perpetuam a desigualdade e o subdesenvolvimento no Brasil. •
*Economista pela USP, mestre e doutor em Economia pela Unicamp. É professor de Economia na Facamp.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1220 DE CARTACAPITAL, EM 10 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A religião neoliberal”
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