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A religião não pertence à direita

Em ‘Jesus da Gente’, o pastor Henrique Vieira se propõe a interpretar a Bíblia sob a ótica dos oprimidos

Andar com fé. Ativo nas redes sociais, o evangélico participou do filme Marighella, gravou com Emicida e é candidato a deputado federal pelo PSOL do Rio - Imagem: Thais Alvarenga
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Este mês, a rotina do pastor Henrique Vieira, candidato a deputado federal pelo PSOL do Rio de Janeiro, tem incluído não apenas a campanha – intensa, como todas as campanhas –, mas também os compromissos ligados ao lançamento de seu terceiro livro. Jesus da Gente – Uma Leitura da Bíblia Para Nossos Dias expõe a teologia desse homem nascido próximo à Favela Ipiranga, em Niterói, que vem descontruindo o clichê do pastor evangélico conservador, de extrema-direita, engravatado e branco.

Admirador declarado de Lula e Marcelo Freixo, Vieira tem no Instagram – onde acumula mais de 550 mil seguidores – vídeos de apoio feitos por figuras como o Padre Júlio Lancellotti, Gregório Duvivier e Bruno Gagliasso. Negro, vestiu-se de Jesus no desfile da Mangueira em 2020 e, sentado sobre um jumentinho, atravessou a Sapucaí. “É um samba-enredo que fala de fé, algo fundamental na minha vida”, diz. “E trazia uma imagem muito diferente de um Cristo com arma na mão.”

Seu pensamento teológico, social e político vai na mão oposta da ideia de um Jesus usado para o oprimir e punir. Seu desejo é retomar a narrativa de Jesus como alguém do povo, politizado, e interpretar a Bíblia “pela perspectiva dos oprimidos”. Escritor, ator, poeta e ex-vereador, Vieira conquistou um público que vai além de sua comunidade na Igreja Batista do Caminho. No cinema, interpretou, em Marighella (2021), um frei dominicano pertencente a um grupo de religiosos que enfrentou a ditadura militar. Também já gravou com Emicida.

Jesus da Gente – Uma Leitura da Bíblia Para Nossos Dias transita entre a teologia, a sociologia e algo que pode ser definido como uma análise literária da Bíblia. Sua linguagem, em tom coloquial, é bastante acessível.

“Despolitizar Cristo é uma estratégia milenar para transformar a religião em algo ligado ao poder e ao privilégio”, explica. “Na época de Jesus, não havia separação entre ele e a política. Sua fé era política, de acordo com seu tempo histórico. Não se trata de ideologizar Jesus, mas de lembrar que ele está próximo da luta dos excluídos.”

O pastor busca inspiração e base teó­rica em diferentes correntes da teologia: a da libertação, a negra (que traz a perspectiva dos oprimidos), a feminista e a ecológica (centrada nas relações entre religião e natureza). No livro, autores como o teólogo negro norte-americano James ­Cone e os brasileiros Ronilso ­Pacheco, Odja Barros, Leonardo Boff (autor do prefácio) aparecem ao lado dos pensadores Karl Marx e Ludwig Feuerbach, e do poeta amazonense Thiago de Mello. Jesus da Gente é, assim como o pastor, uma profusão de referências e citações.

Outra ideia constante tanto no livro quanto em sua fala é a da historização de Jesus e da fé. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), ele leu muitos pensadores marxistas e diz, provavelmente pensando naqueles que enxergam o campo evangélico como um bloco único, que sua formação, embora peculiar, está longe de ser exclusiva entre os evangélicos.

A difusão de um campo religioso progressista é, inclusive, uma das principais bandeiras de sua candidatura. Ele deseja apresentar um contraponto democrático ao evangelismo conservador, que chegou ao poder e institucionalizou-se nos últimos anos. “Esse fundamentalismo que avançou dentro da política institucional precisa de uma resposta”, diz. “Imagine a potência de se ter um pastor evangélico negro, batendo de frente com essas pessoas, no berço do bolsonarismo.”

No livro, ele explicita esse posicionamento: “O fundamentalismo como forma de vivenciar a religiosidade sufoca a possibilidade do convívio, da abertura ao outro, da disponibilidade à diferença, da celebração do encontro”.

JESUS DA GENTE – UMA LEITURA DA BÍBLIA PARA NOSSOS DIAS. Pastor Henrique Vieira. Objetiva (128 págs., 49,90 reais)

Filho de um alfaiate e de uma professora de escola pública, Vieira cresceu morando com a família na casa da avó, num condomínio popular chamado Sete de Setembro e, ainda na adolescência, começou a pregar. “Culto das senhoras da igreja, às 6 horas da manhã de um sábado, é o Henrique que prega”, recorda, rindo. Hoje, aos 35 anos, é casado e pai de uma menina.

Apesar de ter hoje outros canais de comunicação, ele diz que a pregação formal, no púlpito, segue sendo importante. “Me sinto realizado”, diz, antes de reiterar que esta não é, de forma alguma, a única forma de levar a palavra de Deus. “Tenho as palavras e as palavras me têm”, emenda, com sua fala envolvente.

Para o pastor Henrique Vieira, a escrita, a arte e o discurso são ferramentas fundamentais para que se recupere a imagem de Jesus negro e defensor dos oprimidos. Mas ele acredita que, neste momento, o enfretamento contra essa ideia de um Jesus opressor pode dar-se de forma ainda mais contundente por meio da política institucional.

“A política pode ser um espaço de testemunho, de serviço com o povo e compromisso com os pobres. Minha ação política expressa minha fé. As coisas se complementam”, afirma. “Meus atos políticos estão ao lado de quem sofre. Fé não pode ser um projeto de poder para dominar o Estado.”

E será que, com a agenda tão cheia de compromissos, o Pastor ainda encontra tempo para ler a Bíblia diariamente? “O Evangelho é minha respiração. Ele e a oração são partes importantes da minha vida, e os faço todos os dias”, responde, com a conversa se aproximando do fim. “Mas o Evangelho é muito mais que isso. ‘Pregue o Evangelho o tempo inteiro e, quando necessário, use palavras’”, conclui, citando, sorridente, São Francisco de Assis. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1228 DE CARTACAPITAL, EM 5 DE OUTUBRO DE 2022.

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