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A redescoberta dos brasis

Na esteira dos debates identitários, artistas autodidatas, negros e pobres começam a ser tirados dos escaninhos

Invenção. O navio feito em madeira, tecido e bordados é uma das 400 obras de Arthur Bispo do Rosário expostas na sede do Itaú Cultural, em São Paulo - Imagem: Rafael Adorjan e Hugo Denizart/Itaú Cultural
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Já se passaram 30 anos desde que o curador Ricardo Rezende teve o primeiro contato direto com a obra de Arthur Bispo do Rosário (1911-1989), interno da Colônia Juliano Moreira, no Rio. Coube a ele, à altura, abrir caixas e manipular peças enormes para uma mostra do artista no Museu de Arte Contemporânea da Universidade São Paulo.

O que espanta Rezende, tanto tempo depois, é o fato de, nas entrevistas que tem concedido para falar sobre Bispo do Rosario – Eu Vim: Aparição, Impregnação e Impacto, aberta no Itaú Cultural, em São Paulo, na quarta-feira 18, ouvir perguntas sobre o trabalho de Bispo ser ou não ser arte.

“Ainda há, sim, resistência em se entender que a arte não intencional é arte”, afirma, enquanto desce as escadas que levam ao espaço da exposição dedicado a outros expoentes da arte manicomial brasileira e a artistas conceituais que, em residências ou outras experiências em instituições, foram influenciados pela criação dos internos.

A abertura dessa grande e impactante retrospectiva coincide com a presença, em São Paulo, de outras três exposições que se voltam a artistas cuja trajetória foi marcada pela pobreza, pela falta de acesso à educação formal e por vivências muito distintas daquelas dos artistas vindos das classes favorecidas.

O Centro Cultural Fiesp exibe, desde o mês passado, J. Borges – O Mestre da ­Xilogravura, que reúne 66 trabalhos, sendo dez deles inéditos, desse filho de agricultores nascido em Bezerros, no Agreste pernambucano, há 86 anos.

As xilogravuras de Borges, que começou a trabalhar no campo aos 10 anos e aproximou-se da arte por meio do cordel, podem ser vistas também em ­Xilograffiti, em cartaz no Sesc Consolação desde o início do mês. Essa exposição procura explorar as pontes entre a linguagem das ruas das grandes cidades e aquela de feições regionais.

“Ainda há, sim, resistência em se entender que arte não intencional é arte”, diz Rezende

A pintura de origem popular, por sua vez, está sendo revisitada em ­Agostinho Batista de Freitas – Mestre das ­Ruas, aberta na semana passada na Galeria Estação. Nascido em Paulínia (SP), Agostinho (1927-1997) foi descoberto por ­Pietro Maria Bardi e teve sua primeira individual no Museu de Arte de São Paulo (Masp), em 1952. Na década seguinte, foi duas vezes à Bienal de Veneza. Os 20 trabalhos exibidos pertencem ao acervo da galerista Vilma Eid e são lidos em um belo texto de Agnaldo Farias.

Outro acervo ligado à arte popular­ que ganha nova dimensão pública é aquele das obras de José Antônio da ­Silva ­(1906-1996), pintor também abraçado por Bardi. Em 1948, o fundador do Masp comprou quatro quadros dele. O livro ­Silva: Um Gênio na Coleção Orandi Momesso (Via ­Impressa Edições de Artes, 348 págs., 200 ­reais) ­reúne 70 obras e propõe novos diálogos e leituras de seu trabalho.

Será essa simultaneidade mera coincidência ou será ela reflexo de uma realocação dos artistas autodidatas, negros e pobres no sistema de arte a partir dos debates sobre identidade e apagamentos na história da cultura dita brasileira?

“Não é coincidência”, responde, de chofre, Baixo Ribeiro, dono da Galeria Choque Cultural, referência em arte urbana, e curador da exposição ­Xilografiti. “É reflexo do espírito do tempo. Neste momento, muitos de nós nos perguntamos: o que foi invisibilizado? Até hoje, as escolas de arte, no Brasil, têm o concretismo e uma suposta linguagem internacional como modelo. Todo o resto é tratado como figurativo, como naïf.”

José Antônio da Silva, conhecido por certa mania de grandeza, costumava, ele mesmo, repetir: “Não admito que me chamem de primitivo, caipira ou ingênuo”. A frase é lembrada pelo crítico Olívio Tavares de Araújo no livro sobre o pintor. Conforme sua pintura foi passando por uma desfiguração, até mesmo um concretista radical como ­Waldemar Cordeiro passou a elogiá-lo – segundo conta, no livro, o pintor Paulo Pasta.

Embora quase sempre dicotômica, a relação das instituições com a arte popular brasileira é antiga. Dentre seus mais famosos admiradores estiveram ­Mário de Andrade, com sua Missão de ­Pesquisas Folclóricas (1938), Lina Bo Bardi, com a descoberta da “mão do povo” em suas viagens ao Nordeste na década de 1950, e Aloisio Magalhães, o designer pernambucano que, na década de 1970, levou o fazer e a cultura populares para dentro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Revisitados. Obra sem título (1954), de José Antônio da Silva, Praça da Bandeira (1989), de Agostinho Batista de Freitas, e Forró Nordestino, xilogravura de J. Borges – Imagem: João Liberato

“A Semana de 22 foi um marco do abrasileiramento da arte e do surgimento de um olhar para os artistas que não frequentaram escolas de arte”, diz ­Angela Mascelani, diretora do Museu do Pontal, no Rio, que, neste sábado 21, realiza o seminário Modernismos, Arte e Cultura Popular. “Mas, naquele momento, o que tínhamos eram artistas da norma culta tomando o povo como inspiração. Olhava-se para essa produção muito como artesanato. Valorizava-se a manualidade, não o pensamento.”

Ângela, assim como Baixo Ribeiro, está certa de que a revisão de artistas historicamente colocados em escaninhos muito específicos – caso de Bispo, Agostinho e Silva – insere-se em um movimento mais amplo em curso na sociedade. A própria existência do Museu do Pontal, acredita ela, é reflexo disso. “Acho que isso tem a ver com o momento de perplexidade da nossa sociedade”, diz. “Passamos a entender melhor o quanto grupos majoritários, como os afrodescendentes, foram apagados da história da arte.”

São vários, não por acaso, os negros que o recorte curatorial de Bispo do Rosario – Eu Vim: Aparição, Impregnação e Impacto acabou por fazer presentes entre as quase 600 obras exibidas nos três andares do Itaú Cultural.

Entre os integrantes do Ateliê Gaia, coletivo formado por gente que passou pelo serviço de saúde mental da Colônia Juliano Moreira, onde Bispo – nascido em Japaratuba (SE) – viveu, havia outros negros. Entre os artistas contemporâneos selecionados pelo diálogo, mesmo que não consciente, com Bispo estão vários negros, como Maxwell Alexandre e Sônia Gomes – mas não só.

Também em Regina Silveira, Abraham Palatnik (1928-2020) e ­Carmela Gross, Ricardo Rezende encontrou fios que se conectam àqueles que Bispo tirava dos uniformes dos internos e usava para costurar objetos, mantos e faixas.

Vai se enfraquecendo, assim, a visão que fez com que, por décadas, a arte feita pelo “povo” fosse exibida separadamente daquela feita pela elite. “Alguns conceitos e delimitações, como arte bruta, arte popular e arte naïf, foram criados dentro das universidades, mas não querem dizer muita coisa. O Bispo dizia que não era artista, que só obedecia às vozes que ouvia. Quer algo mais contemporâneo do que essa ideia de não arte?”, pergunta, rindo, o curador. “A hierarquização persiste, mas não cabe mais.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1209 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A redescoberta dos brasis”

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