Cultura

A recriadora do absurdo

Um grupo de adultos joga vôlei animadamente, apesar dos 12ºC negativos. A poucos metros da brincadeira, um vulcão inativo havia 6 mil anos está em erupção e a fenda de lava ameaça servir de linha de fundo à quadra imaginária. Captada na Islândia, no início […]

Apoie Siga-nos no

Um grupo de adultos joga vôlei animadamente, apesar dos 12ºC negativos. A poucos metros da brincadeira, um vulcão inativo havia 6 mil anos está em erupção e a fenda de lava ameaça servir de linha de fundo à quadra imaginária. Captada na Islândia, no início do ano, a imagem foi o gatilho para Partida de Vôlei à Sombra do Vulcão, peça-filme do Grupo Galpão com dramaturgia de Silvia Gomez.

Mineira como a trupe que a encena a partir do sábado 4, Silvia, de 44 anos, tem apreço pelas fissuras que o absurdo cava na superfície aparentemente prosaica do cotidiano. Essa “escrita em delírio”, como a egressa do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), de Antunes Filho, gosta de dizer, tem conquistado cada vez mais adeptos na cena brasileira e começa a ocupar palcos estrangeiros. O Céu Cinco Minutos ­Antes da Tempestade, texto que a projetou, em 2008, sob os auspícios de Antunes, ganhou uma montagem londrina. Neste Mundo Louco, Nesta Noite ­Brilhante estreia este mês no México. Seus textos foram traduzidos para sete idiomas.

Em Partida de Vôlei…, uma mulher inicia peregrinação rumo a um país longínquo, depois de ficar fascinada pelo despertar do tal vulcão. A meio caminho, ela se descobre grávida. A tentativa de volta para casa se revelará uma empreitada bizantina: o país natal esfacelou-se. A voz, identificada como Ela, viaja pelos corpos de seis dos oito integrantes do Galpão que estarão em cena. A peça combina o clima surrealista com anedotas do grupo e inspirações literárias.

“Para mim, toda escrita é uma reelaboração daquilo que se lê”, diz Silvia, em conversa num café da Zona Oeste de São Paulo. “Vou pegando tudo que tem aqui: seu álcool em gel, seu cookie, misturo tudo. Para mim, escrever é apanhar a vida, o que está disponível. E tudo serve ao delírio.”

“Se a gente olha bem para a realidade, o delírio é ela”, diz a autora formada por Antunes Filho

Mas o devaneio tem âncora no real. É, afinal de contas, uma jornalista com 20 anos de passagens por redações quem opera esse curto-circuito. Em A Árvore, peça-filme que estreou online em fevereiro e sai em livro pela Cobogó este mês, uma mulher ganha um vaso de planta de presente da vizinha. É a senha para se despedir do modo como viveu até ali e se transformar em ser vegetal.

Nessa sondagem de outras formas de estar no mundo, o texto dialoga com as fileiras de pensadores contemporâneos que pleiteiam uma recalibragem das relações do homem com os reinos animal e vegetal – e mesmo com seres inanimados.

Em Marte, Você Está Aí? (2017), o mote foram os protestos que tomaram as ruas a partir 2013. Neste Mundo Louco, Nesta Noite Brilhante (2019) teve como ponto de partida as absurdas estatísticas de feminicídios no Brasil. “Amo ser jornalista, porque a profissão me dá sintonia com o meu tempo e me ensinou a pesquisar”, afirma. “O Antunes falava na importância de ‘dar um golpe no real’ por meio do texto de tea­tro. É o que me permite ir mais a fundo no real, vê-lo por dentro. Porque, se a gente olha bem para a realidade, o delírio é ela.”

Foi no CPT que Silvia ampliou seu repertório, testou personagens e entendeu que, na alquimia do devaneio, cabia certo humor. Se fosse encenada em chave melodramática, sua dramaturgia, diz, “se tornaria insuportável”. Foi também nos bancos do CPT, frequentados por oito anos, que conheceu o diretor Eric Lenate, com quem faz parcerias desde 2008.

Jogo visual. Partida de Vôlei à Sombra do Vulcão combina um clima surrealista com anedotas e referências literárias

“Não há ninguém que faça um personagem raciocinar, se embaralhar entre racionalidade e sentimento como ela”, elogia Lenate. “Ela desenha figuras à beira de um ataque de nervos de forma brilhante. Consegue falar da tragédia cotidiana com humor. Em seus textos, alguém é capaz de soltar uma asneira hilária antes de continuar a comer o seu fígado.”

São também titulares de seu time a atriz e diretora Yara de Novaes, sua tia, a atriz Débora Falabella e o diretor e produtor Gabriel Fontes Paiva, seu marido – a trinca que forma o Grupo 3. “O teatro da Silvia é uma porrada, mas você sai com a alma lavada”, resume Débora. “É uma voz livre, sem pudores, em contraposição ao mau gosto do mundo, à estética do feio que parece predominar hoje.”

Eduardo Moreira, ator e diretor artístico do Galpão, um dos que emprestam a voz a Ela de Partida de Vôlei…, sentiu na prática o exercício dessa liberdade criativa. “O teatro dela tem uma qualidade de escuta muito aguda. Ela vai moldando o texto na boca dos atores, de acordo com o que surge nos ensaios”, diz.

O encontro com os conterrâneos é uma volta para casa. Foi no Festival Cenas Curtas, sediado no Galpão Cine Horto, em 2001, que ela teve a primeira peça montada: A Cada Dia a Vida Fica Mais Curta. Passados 20 anos, Silvia ainda estremece a cada estreia. “Para que inventei isso? Vou fazê-los passar vergonha”, diz. Igualmente persistente é sua convicção na perenidade do teatro, capaz de resistir a ventos e marés tecnológicos, financeiros, pandêmicos e o que mais ameaçar devorá-lo.

“A dramaturgia e o teatro parecem sempre estar em crise, porque dialogam com o impasse de seu tempo”, diz. E se crises pedem respostas criativas, Silvia tem um arsenal para enfrentá-las. Ela deseja, entre outras coisas, transformar Mantenha Fora do Alcance do Bebê (2015) em um filme, com Débora na direção, e fazer uma peça em torno da arquiteta Lina Bo Bardi. “A crise”, diz ela, “é a própria estratégia de sobrevivência, na verdade.” Pelo menos no palco, a cada dia a vida fica mais ampla. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1186 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: RENATO NASCIMENTO

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.