Cultura
A raiz do mal
O Populismo Reacionário é uma radiografia da ascensão bolsonarista e um alerta sobre o futuro


O uso do conceito de populismo para analisar personagens e governos da política brasileira não é em si uma novidade. Apenas como exemplo podemos citar a abordagem de Francisco Weffort, que o aproxima da definição marxista de bonapartismo, ainda no fim dos anos 1960. As variações na definição do conceito e seu caráter eminentemente negativo chegaram a resultar em crítica bem-humorada do cientista político César Guimarães, em texto publicado em 2001: “O populismo, que sobre ser tão complexa questão conceitual, é também política popular de que não se gosta”.
Todavia, o populismo nunca foi objeto exclusivo de políticos e cientistas sociais brasileiros. Também o cientista político norte-americano Robert Dahl havia dedicado um capítulo para a discussão em seu Prefácio à Teoria Democrática, de 1956. Com o avanço mundial de personalidades como Donald Trump, Recep Erdogan e Jair Bolsonaro, a preocupação presente na produção intelectual internacional, ao menos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, ganhou centralidade como forma de entender as transformações recentes na democracia e explicar a percepção de crise no sistema liberal posterior à queda do Muro de Berlim. É nesse conjunto de esforços que se insere O Populismo Reacionário: Ascensão e Legado do Bolsonarismo, dividido em uma introdução, quatro capítulos e conclusão, no qual se faz uma radiografia de como o populismo reacionário chegou ao poder, quais são seus objetivos e quais são as alternativas em um cenário no qual a reeleição pode não acontecer.
O livro foi escrito pelos cientistas políticos Christian Lynch e Paulo Henrique Casimiro, ambos professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O opúsculo parte de uma definição do populismo como um modelo de representação política presente em sociedades massificadas, que dispensa a mediação de instituições e é praticado por uma liderança carismática que afirma representar a maioria. Nessa definição, os autores acompanham não só a discussão internacional clássica de Robert Dahl, mas a somam com outras recentes, como a de Nadia Urbinati e Pierre Rosanvallon. Contudo, a grande contribuição do livro ao debate público está menos pelo uso do conceito de populismo e mais pela sua junção com o qualificativo “reacionário”.
Se é verdade que o populismo frequenta tanto os debates acadêmicos quanto as discussões da esfera pública, o mesmo não pode ser dito sobre o reacionarismo. Fora das discussões especializadas, ele é corriqueiramente definido como sinônimo de conservador ou retrógrado, sem grande atenção para com o seu significado específico. Tendo em vista que a forte preocupação do livro é abordar o fenômeno político do bolsonarismo por meio da discussão sobre ideologias e imaginação política, os autores ocupam-se em descrever o reacionarismo, em linguagem acessível. Para os autores, ele seria uma vertente radical do pensamento conservador, que não estaria preocupado em preservar instituições cujo tempo teria aperfeiçoado, mas destruí-las, a partir de uma utopia que projetaria em um passado ideal a idade de ouro. No caso dos contrarrevolucionários franceses, ela seria a Idade Média europeia, dada pela supremacia da Igreja e uma noção forte de hierarquia social. Em nossa cor local, o reacionarismo seria inspirado em um ideal colonial bandeirantista, predador e avesso ao controle estatal de seus instintos. Ao mesmo tempo, a ditadura é percebida como época de ordem e de salvação nacional diante da ameaça comunista. O bolsonarismo seria, então, produto dessa dupla inspiração.
O POPULISMO REACIONÁRIO: ASCENSÃO E LEGADO DO BOLSONARISMO. Christian Lynch e Paulo Henrique Casimiro. Editora Contracorrente (100 páginas, 54 reais)
A grande contribuição de O Populismo Reacionário para o debate público é o de apresentar ao leitor, por uma linguagem relativamente simples, como a forma de pensar do bolsonarismo mobiliza sua ação política. Entretanto, eles não se desviam da tarefa de explicar a partir dessa abordagem como ele chegou ao poder. Para tal, apontam em que sentido o liberalismo judiciarista alimentado pela Operação Lava Jato e o neoliberalismo de feição darwinista social teriam visto em Jair Bolsonaro o representante de suas agendas anticorrupção e contrária à intervenção do Estado na economia e nas políticas sociais. Para eles, os protestos de 2013 foram o sintoma de uma mudança de ares ao conservadorismo. O desfecho foi a eleição da possibilidade mais à direita, graças ao auxílio de técnicas populistas de propaganda nas redes sociais, importadas dos Estados Unidos e coordenadas pelos filhos do presidente.
No governo, o que teria sido levado à frente seria uma agenda de destruição, guiada por um líder populista reacionário, cuja intenção não era administrar ou governar, mas fazer valer seus interesses pessoais e familiares. Para Lynch e Casimiro, isso não se explicaria só pelo interesse econômico, mas pelo fato de o reacionarismo ser uma vertente de pensamento político no qual não existiria divisão entre público e privado. Ao contrário, nela os valores familiares deveriam guiar a sociedade. Nessa empreitada, o populismo reacionário conta com apoio de militares que auxiliam na inspiração de Bolsonaro na ditadura e no seu anticomunismo difuso, ampliado para qualquer forma de pensamento à esquerda da deles próprios. Os neoliberais tiveram, por sua vez, a incumbência de realizar a agenda econômica. Todavia, a aproximação com o Centrão teria esvaziado a realização da ortodoxia econômica em detrimento da compra de parlamentares que impediriam o impeachment do presidente.
A conclusão do livro é um alerta. A intenção do populismo reacionário bolsonarista é minar as instituições construídas na Nova República e os procedimentos mais basilares. O governo Bolsonaro deu posição privilegiada para isso, mas sua provável derrota eleitoral – mesmo na ocasião de o resultado das urnas não ser questionado – não significará seu desaparecimento como força social ou como vertente reacionária do pensamento político brasileiro. Assim, sua contenção não será o fim da luta pela volta da normalidade, mas a necessidade de continuar o combate. •
*O autor é doutor em Ciência Política pelo Iesp-Uerj, pós-doutorando no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1221 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A raiz do mal”
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