Cultura
A racionalidade à brasileira
Pode o humor ser uma boa arma para desnudar os desvarios da extrema-direita? Bruna Othero aposta que sim


Qual o papel do humor diante dos absurdos produzidos pela extrema-direita contemporânea? À seriedade do tema não deveria corresponder um tratamento rigoroso e racional, capaz de compreender o fenômeno em vez de torná-lo objeto de escárnio? Ou o humor pode ser um instrumento eficaz para desnudar os despropósitos da direita mais extrema?
São essas questões que nos vêm à mente quando lemos O Presidente Pornô, primeiro romance da jovem poeta mineira Bruna Kalil Othero. Aqui, a visão depreciativa é deliberada e permanente. Em pequenos capítulos, escritos tanto em prosa quanto em poesia, com um pé no presente e outro no passado, Bruna vai revelando aspectos da derrocada recente do “Plazil”, um dos vários neologismos presentes no texto.
Trata-se de uma espécie de romance dramatúrgico, cuja narrativa – escrita quase sempre em minúsculas – é estruturada em três atos. Enquanto o primeiro ato dá conta da disputa eleitoral, o segundo passa pela trajetória pessoal do “Segundo-Sarnento do Exércuto” Bráulio Garrazazuis Bestianelli, o candidato vitorioso do Partido Armamentista Ufanista, o PAU. O terceiro, por fim, chega ao período de seu governo. Ao longo do romance, a peça é apresentada ao imperador e à imperatriz.
Eleito, Bestianelli não hesita em dar um golpe, com o apoio das “Forças Mamadas”, em nome da luta contra o “comecuísmo”. No último ato, ele próprio acaba derrubado após uma revolta popular, à qual sucede o governo de uma “frente ampla”.
O Presidente Pornô. Bruna Kalil Othero. Companhia das Letras (248 págs., 74,90 reais)
Qualquer semelhança com a realidade não é, evidentemente, mera coincidência. A própria autora adverte de saída: “Todos os acontecimentos políticos narrados neste livro ocorreram, ocorrem e ocorrerão na história republicana do Brasil”.
Mas a originalidade do romance se revela, acima de tudo, na forma como essa realidade é transformada num universo relativamente próprio, ou seja, nos procedimentos narrativos por meio dos quais Bruna Othero produz o real, em vez de simplesmente reproduzi-lo.
No início dos anos 1960, Adorno censurou Brecht pelo modo como este mobilizava o humor para tornar visível a mediocridade dos líderes fascistas. Para Adorno, tal postura pecaria pelo menosprezo aos inimigos, cujos triunfos acabariam sendo vistos como resultado de uma alucinação coletiva imune à explicação racional.
É verdade que, por vezes, O Presidente Pornô parece flertar com essa tentação ao esculacho simbólico das personagens mais abjetas. É o que se observa, por exemplo, na referência constante à dimensão “pornográfica”, quando não escatológica, de Bestianelli. Há passagens que oscilam entre o hilário e o excessivo.
No entanto, visto no conjunto, o romance quase sempre escapa dessa armadilha. E se isso acontece é, entre outras coisas, porque a narrativa mantém o leitor atento para o fato de que, no fim das contas, o absurdo pode ser constitutivo do real. Nesse sentido, a reconstrução do real pela ficção é uma forma de mostrar – pelo seu reverso humorístico – que o caráter irracional do que vivemos é um desdobramento possível da “racionalidade” à brasileira.
O filósofo holandês Baruch Spinoza dizia que, para compreender, era preciso dispensar tanto o riso quanto o choro. Lançando mão de uma prosa inovadora, Bruna nos entrega um livro cuja leitura nos faz rir para não chorar. Mas é justamente assim que ela nos ajuda a compreender aspectos de um país que, como disse o poeta, nunca foi para principiantes. •
*Fabio Mascaro Querido é professor de Sociologia na Unicamp.
VITRINE
Por Ana Paula Sousa
O Tenente Quetange, de Iúri Tyniánov (1894-1943), ganha, pela 34 (96 págs., 53 reais), uma bem-vinda reedição. A novela gira em torno do supostamente falecido Tenente Siniukháiev, cuja improvável sina servirá de mote, nas hábeis mãos do autor, para um retrato mordaz da burocracia.
Do lançamento de Quando Me Descobri Negra, oito anos atrás, a sua reedição (Fósforo, 104 págs., 44,90 reais), Bianca Santana tornou-se um nome de proa dos movimentos identitários. E é certo que sua abordagem do racismo contribuiu para a qualificação dos debates sobre o tema no País.
Passada na ditadura, a trama de O Mensageiro (Editora Bagai, 312 págs., 59,90 reais), de Rafic Ayoub, tem como protagonista Tárik, filho de um imigrante libanês que lutou pela independência de seu país. Além do pai, Tárik terá como figura definidora da formação de seu caráter Carlos Marighella.
Publicado na edição n° 1274 de CartaCapital, em 30 de agosto de à brasileira.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A racionalidade à brasileira’
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