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A pedra tornada pele e veludo

Donatello soube resumir a dor e a coragem e expressar, em três dimensões, as emoções humanas

A pedra tornada pele e veludo
A pedra tornada pele e veludo
Davi com os pés sobre a cabeça de Golias; o alegre Spiritello; o Cristo morto; e o intelectual pensativo são algumas das figuras expostas em Londres - Imagem: Alexandrine Baptiste, Giovanni Racciatti, Museu Nacional de Bargello e Museu de Arte Bizantina de Berlim
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Uma figura surpreendente chegou à Grã-Bretanha: um homem com uma quase carranca, pensamentos insones e barba por fazer. Seus olhos estão abatidos e sua testa redonda, baixa. Ele seria reconhecido em qualquer lugar de sua Itália natal: o intelectual pensativo, de olhos escuros e ascético, com uma barba preta desgrenhada. Só que ele é do século XV, e fundido em bronze dourado reluzente.

A encomenda original era para um relicário medieval – lugar onde se guardavam os restos mortais de um santo, neste caso, o crânio de San Rossore, um soldado romano convertido ao cristianismo. Mas o escultor Donatello superou todas as regras e convenções e não apenas imaginou o santo como um ser vivo – não um ícone – como criou o impressionante retrato de um homem moderno no pleno ato de pensar.

A sensação de andar em volta desse ser e ver seu aspecto mudando, como se estivesse em sintonia com seus pensamentos em movimento, pode ser experimentada desde a sexta-feira 10 no ­Museu ­Victoria and Albert (V&A), em Londres. ­Donatello: Esculpindo o ­Renascimento é uma espantosa exposição do mestre florentino.

Donatello (1386-1466) é o mais revolucionário dos escultores italianos. Nascido em Florença, filho de um cardador de lã, foi aprendiz de Lorenzo Ghiberti durante a execução das grandes portas de bronze do Batistério. Sua figura mais famosa é, provavelmente, o jovem Davi em bronze preto, o primeiro nu masculino na arte renascentista.

Extraordinariamente sedutor em sua beleza esbelta, trajado apenas com chapéu e botas elegantes, esse David foi feito para ser visto em círculos no pátio do palácio dos Médici. Tornou-se símbolo da bravura política contra gigantes tirânicos.

A exposição londrina traz um Davi maior do que o natural, esculpido em mármore. Esse jovem se eleva acima de você com um balanço de dançarino, folhas de amaranto enfiadas nos cachos do cabelo e a cabeça conscientemente inclinada, como se estivesse posando para uma câmera. A postura é toda graciosa e a torção, incrível.

Enquanto rodeia a figura, você pensa em como Donatello pôde transformar pedra em algo tão flexível quanto pele quente e veludo. Seu cinzel descreve a tensão exata dos laços através dos ilhoses, o amontoado de seda canelada, a longa linha da coxa, o pé colocado suavemente sobre a cabeça decepada de Golias. A escultura alterna-se entre religião e mito, entre estátua pública e retrato misterioso. É como se estivesse perpetuamente inquieta.

As figuras do mestre florentino parecem ansiar por mais do que a vida comum de uma escultura

Todas as figuras de Donatello parecem ansiar por mais do que a vida comum de uma escultura. Uma de suas primeiras encomendas foi fazer um Cristo morto para a fachada de uma igreja florentina. Seu Messias parece estar se libertando do mármore de que é feito, avançando no espaço. As obras de Donatello foram quase todas projetadas para locais bem acima da altura dos olhos, e ele é conhecido por ter feito ajustes para situar as figuras numa relação mais dramática e pessoal com o espectador. Foi um gênio da perspectiva.

Um imenso crucifixo do altar-mor de uma igreja de Pádua, incluído na mostra, tem exatamente essa combinação excepcional de intimidade e afastamento. O Cristo morto paira acima do observador, inefavelmente divino. O escultor, no entanto, o faz descer para perto de nós para percebermos o farrapo da tanga, as fibras esgarçadas da corda, as pobres artérias tensas e o peso maciço dos pregos.

Donatello, até hoje, parece uma figura esquiva e contraditória. Supostamente desinteressado por literatura e, ainda assim, tão sofisticado, jantou com os Médici e produziu para eles as mais refinadas de todas as esculturas. O pintor Giorgio ­Vasari (1511-1574) contava que ele gritava para que suas estátuas ganhassem vida. Isso o faz, porém, parecer qualquer velho escultor, interessado na semelhança de fala.

Donatello era muito mais radical e inventivo. A mais impressionante de suas experiências é no schiacciato, em que as esculturas são feitas no mais delicado relevo possível. Outros já haviam feito isso, mas não com tão prodigiosa sutileza. Seus relevos têm apenas alguns milímetros de profundidade.

Donatello fez também algumas das esculturas mais estranhas da história da arte. Uma delas, exposta no V&A, é São João Batista, fusão selvagem da estátua romana clássica com o menino santo com halo, envolto em um velo macio e espesso. Ninguém sabe realmente o que o esquisito querubim de perneiras de couro é ou significa.

Há também o minúsculo Spiritello, com o dedo do pé curvo, quase explodindo de alegria enquanto agita seu pandeiro. Ou a Virgem velha, desgastada, com o coração sobrecarregado, as mãos cheias de veias e nós. Ele imaginou santos como crianças, mártires como intelectuais emaciados e heróis como adolescentes imaturos. Ele entendeu o que era ter sofrido e soube resumir a dor e a coragem em uma figura humana que se relaciona diretamente conosco.

O que Donatello tirou do passado e deu ao futuro foi a empatia humana: as emoções de nossa vida expressas em três dimensões. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1247 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A pedra tornada pele e veludo “

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