Cultura

A nova primavera de Alceu Valença

Aos 74, o músico vê a explosão de canções de 30 anos atrás na internet, com 151 milhões de acessos a um vídeo de La Belle de Jour e Girassol

Alceu Valença (Foto: Leo Aversa)
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Nos anos 1980 e 1990, o cantor, compositor e violonista pernambucano Alceu Valença viveu às turras com as gravadoras (hoje extintas) RCA Victor e EMI-Odeon, por acreditar que boicotavam um possível sucesso comercial das canções que ele compunha e lançava. Décadas se passaram e um algo novo começou a acontecer: algumas daquelas músicas antigas se tornaram fenômenos tardios a partir da internet. Colocado no YouTube em 2017, um vídeo-solo oficial de 8 minutos gravado no show O Grande Encontro 20 Anos (com o conterrâneo e parceiro Geraldo Azevedo e a paraibana Elba Ramalho), acumula até o presente 151 milhões de visualizações. Trata-se de um pot-pourri com os antigos não sucessos Girassol (1986, mar e sol/ gira, gira, gira, gira, gira, girassol) e La Belle de Jour (1992, eu lembro da moça bonita/ da praia de Boa Viagem…), que de lá para cá parecem fazer parte desde sempre do imaginário musical brasileiro. 

Somando as diversas versões disponíveis no YouTube, La Belle de Jour ultrapassa 250 milhões de acessos. Outro novo sucesso velho de Alceu é Anunciação (1983, na bruma leve das paixões que vêm de dentro/ tu vens chegando pra brincar no meu quintal), com 41 milhões de visualizações. Jovens participantes nordestinos do reality show Big Brother Brasil choram emocionados ao som dessas canções.

Aos 74 anos, o artesão dessas pequenas grandes façanhas também tem sido seduzido por sua obra passada. Fora dos palcos desde março de 2020, quando cancelou 45 shows no Brasil e 16 na Europa, Alceu voltou a mergulhar no próprio repertório. Parado pela primeira vez em mais de 50 anos, desde que botou o pé na estrada, ele passou a tocar violão incansavelmente. “Sou estradeiro há 500 anos. Eu não tinha relação nenhuma com a minha casa aqui no Rio de Janeiro, só fazia voltar para casa no domingo e na terça-feira estava na estrada de novo”, diz, por telefone, do confinamento. “Para mim foi cruel ficar confinado dentro de casa, uma coisa terrível. Mas preciso me proteger e também dar exemplo às pessoas, ter empatia com elas”, conforma-se.

Alceu Valença, em ilustração de Pillar Veloso.

A quarentena o fez então gravar, só ao violão, nada menos que três novos discos (além de mais um com guitarra), dos quais lançou o primeiro, Sem Pensar no Amanhã (Deck), aberto por nova versão de La Belle de Jour. Essa musa frequenta várias de suas músicas, inclusive a histórica Táxi Lunar (1979, apenas apanhei à beira-mar/ um táxi pra estação lunar), composta com Geraldo Azevedo e o paraibano Zé Ramalho. Híbrida, a personagem é inspirada, entre outras, por uma moça que ele viu dançando balé clássico sozinha na praia de Boa Viagem, no Recife, e pela atriz inglesa Jacqueline Bisset, que um dia, num bar parisiense, pediu que ele lhe fizesse um poema. Alceu confundiu-se depois com a francesa Catherine Deneuve, atriz do filme A Bela da Tarde (1967, do espanhol Luis Buñuel), a quem passou a atribuir a inspiração, e assim nasceu La Belle de Jour.

Híbrida também é a sonoridade da música de Alceu Valença, que brota de referências díspares: o conterrâneo Luiz Gonzaga, os vozeirões dos ídolos do rádio que ouvia na casa do avô (não havia vitrola em casa, porque seu pai não queria que ele virasse artista), os frevos, maracatus e emboladas de Pernambuco, a assimilação involuntária do rock, do qual diz não se sentir particularmente próximo. “Vi show de Bob Dylan e não achei a menor graça”, afirma. A estreia discográfica ao lado de Geraldo Azevedo, em 1972, foi regida pelo maestro tropicalista Rogério Duprat e ganhou notoriedade posterior como um tipo de psicodelia à brasileira. “Seria ótimo, mas não tinha nada a ver. Não fumo maconha, sou doido de nascença”, diz. Em 1972, a dupla chamou o mestre paraibano Jackson do Pandeiro para cantar com eles Papagaio do Futuro, uma embolada de Alceu, no Festival Internacional da Canção. Foram desclassificados. 

Os primeiros álbuns-solo confundiram os colegas músicos. “Ninguém entendia o que eram. As pessoas mais ligadas à MPB castiça me olhavam com raiva porque eu era rock’n’roll, e os outros tinham raiva porque eu era MPB. Eu não tinha nada a ver com essa briga.” Alceu esclarece que quem elucidou o sentido de sua música foi o rei do baião em pessoa, quando foi a um show em Juazeiro do Norte. “Cantei com medo de levar um esporro de Luiz Gonzaga, porque eu estava colocando guitarra. No final perguntei se ele gostou do meu conjunto, esperando ele dizer ‘acabe com isso, meu filho’. Sabe o que ele falou? ‘Alceu, você inventou uma coisa totalmente diferente de tudo. O seu conjunto é uma banda elétrica de pife.’” 

 

O artista observa que, de fato, em muitas de suas gravações a guitarra elétrica substitui uma das flautas tradicionais das bandas pernambucanas de pífaros. “Minha cultura é a do sertão profundo, de São Bento do Una, onde nasci. Tive a mesma formação que Luiz Gonzaga teve. Eu ouvia os aboiadores do meio do mato, os sanfoneiros, os cordelistas, os tocadores de rabeca. E Luiz Gonzaga”, decifra-se. O sertão seria protagonista não só de canções, mas também de dois filmes. Em 1973, o compositor e cineasta Sérgio Ricardo deu-lhe o personagem-título de A Noite do Espantalho, rodado no sertão de Pernambuco. Em 2016, Alceu estreou como diretor de A Luneta do Tempo, cujos personagens centrais são Lampião e Maria Bonita. Os dois filmes estão disponíveis na íntegra no YouTube – o autoral foi visualizado 479 mil vezes; o de Sérgio Ricardo, 4.700 vezes.

Apesar de transmitir animação na voz, Alceu assume a tristeza pela interrupção da vida estradeira: “Abate, dá uma angústia que chega e depois vai. Às vezes dá uma tristeza terrível. Eu perdi muitos amigos, muitos parentes, muitos”. Com as duas doses tomadas da vacina, ele planeja se resguardar em Olinda (PE), movido por resultados melhores do combate ao Coronavírus no Nordeste que no resto do País. “Paraíba está muito bem. Pernambuco está com a gota serena também, tudo muito organizado.”

Alceu espanta-se com o Brasil atual, atravessado por vários negacionismos. “Há uma loucura se estabelecendo no País. A ignorância é imensa, e também as crenças. Tem pessoas que acreditam que este vírus foi mandado para destruir a humanidade. Às vezes dizem até que é de Deus. Eu não estou atrás disso, não”, opina. O presidente em exercício elegeu-o como inimigo particular e demitiu uma presidenta da Embratur por supostamente ter encomendado um show de Alceu.

Em isolamento, Alceu gravou três discos no formato voz e violão e mais um com guitarra (Foto: Leo Aversa)

Alceu não quer falar sobre o atual presidente, por experiências ruins com as milícias virtuais, mas acaba falando espontaneamente: “Não votei em Bolsonaro, de jeito nenhum. Faço tudo ao contrário do que ele diz, penso sempre ao contrário. Por exemplo, quando ele não usa máscara, eu uso máscara. Quando ele afirmava que o vírus era uma gripezinha, eu achava que era uma gripezona. Quero dizer também que peguei essa gripe, eu e minha família”. Sobre o conterrâneo Luiz Inácio Lula da Silva, pronuncia-se com cautela: “Se o Supremo Tribunal Federal determinou que Lula tem direito a um novo julgamento, eu estou de acordo. Os princípios que regem a nossa Constituição têm de ser respeitados, você não acha?” 

Em 1979, o horror à ditadura o fez decidir se mudar para Paris, onde gravou seu único outro trabalho de voz e violão, Saudade de Pernambuco, que ficou inédito à época e só foi lançado comercialmente em 2016. “Eu era um cara que não suportava ditadura. Fui porque não aguentava mais ver todo dia notícia de que um amigo meu estava preso, que uma outra pessoa estava sendo torturada. Quem não vivenciou não sabe o que é uma ditadura.”

No cinema, o músico protagonizou ‘A Noite do Espantalho’ (1973), do também compositor Sérgio Ricardo (Foto: Reprodução)

Foi na volta ao Brasil que Alceu consolidou uma primeira onda de sucesso popular, com Anunciação, Tropicana (1982, morena tropicana/ eu quero teu sabor), Como Dois Animais (1982, foi mistério e segredo/ e muito mais, cerca de 9 milhões) e Solidão (1984, a solidão é fera/ a solidão devora, quase 2 milhões). Mais modestas que as outrora obscuras La Belle de Jour e Girassol, foram visualizadas no YouTube cerca de 15 milhões de vezes (Tropicana), 9 milhões (Como Dois Animais) e 2 milhões (Solidão). Disseminada principalmente no Carnaval, a música de Alceu Valença vive uma nova primavera, sem precisar de marketing, gravadora ou televisão.

Publicado na edição nº 1154 de CartaCapital, em 22 de abril de 2021.

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