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A nostalgia em alta

‘O Auto da Compadecida 2’ é um típico exemplar das “sequências de legado”, filão explorado há tempos por Hollywood

A nostalgia em alta
A nostalgia em alta
Sertão das memórias. Selton Mello e Matheus Nachtergaele vivem os personagens de 25 anos atrás neste lançamento que ocupará mais de mil salas – Imagem: Globo Filmes/Columbia Tristar Film e Laura Campanell/Globo Filmes
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Na última vez que o espectador viu a dupla Chicó ­(Selton Mello) e João Grilo (Matheus Nachtergaele), eles caminhavam sertão adentro, sem dinheiro e acompanhados da impetuosa Rosinha (Virginia Cavendish). Vinte e cinco anos depois, O Auto da Compadecida ganha uma continuação que retoma a trajetória destes e de vários outros personagens numa nova aventura ambientada na cidade paraibana de Taperoá.

Se a minissérie televisiva de 1999 virou filme em 2000 e adaptava a peça teatral homônima de Ariano Suassuna publicada em 1955, a sequência foi escrita por quatro roteiristas: João Falcão, Adriana Falcão, Jorge Furtado e Guel Arraes. ­Arraes, diretor do filme original, divide agora a função com Flávia Lacerda, sua assistente no primeiro projeto. Com a volta de boa parte do elenco e uma estrutura que homenageia e repete o estilo de Suassuna, O Auto da Compadecida 2 é a grande aposta do cinema brasileiro nesta virada de ano, com ousada estreia no Natal, em 25 de dezembro, em mais de mil salas.

O momento é oportuno. O cinema nacional, que vinha amargando uma baixíssima participação de mercado desde a pandemia, vem celebrando o sucesso de Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, que se aproxima dos 3 milhões de espectadores e tem fortes chances de ser indicado ao Oscar. Trata-se de um cenário curiosamente similar àquele da estreia do primeiro O Auto da Compadecida. O filme de Arraes chegou às salas um ano após Central do Brasil ter concorrido ao Oscar de 1999. Muito se diz que o cinema no Brasil vive de ciclos – e parece que isso vale até para as coincidências.

O longa-metragem de Arraes era aposta de risco tanto dele quanto da TV Globo na virada do século. Por que o público pagaria para ver no cinema algo que tinha assistido em casa, remontado e condensado? Pois pagou: O Auto da Compadecida vendeu 2,1 milhões de ingressos e foi o único título brasileiro a aparecer no ranking dos mais assistidos nos cinemas em 2000. Para se ter uma ideia do feito, os quatro primeiros lugares eram blockbusters de Hollywood, entre eles Gladiador e Missão Impossível 2.

A produção foi ainda um marco para a Globo Filmes. A empresa, criada em 1998, iniciou sua trajetória no cinema apostando tanto em títulos infantojuvenis, como Simão, o Fantasma Trapalhão (1998) e Zoando na TV (1999), com Angélica, Márcio Garcia e Bussunda, quanto em filmes de teor mais sóbrio, como Orfeu (1999), de Cacá Diegues, e Bossa Nova (2000), de Bruno Barreto. O Auto da Compadecida pareceu um produto atraente: uma comédia regionalista popular ambientada num Nordeste lúdico e protagonizada por atores que, se ainda não eram os astros de hoje, tinham carreira reconhecida.

O filme, todo feito em estúdio, é mais uma celebração do que uma continuação

O Auto da Compadecida 2, com orçamento estimado em 18 milhões de reais, surge num contexto no qual Guel ­Arraes tornou-se uma grife do audiovisual; Mello e Nachtergaele são estrelas; e a empresa produtora não é mais a Globo, e sim a Conspiração Filmes e H20Films. A morte de Ariano Suassuna, em 2014, aconteceu cinco anos antes da ideia de uma continua­ção de seu Auto vir à tona, o que criou um desafio, mas também abriu as possibilidades para que se criasse uma história totalmente inédita a partir do legado do autor.

Se o primeiro filme foi rodado em Cabaceiras, município do sertão paraibano conhecido como a “Roliúde Nordestina”, a sequência foi inteiramente filmada em estúdio, com painéis eletrônicos depois substituídos por efeitos realizados na pós-produção. Isso amplifica a artificialidade fabular das aventuras de Chicó e João Grilo. É como se o espectador abrisse um livro pop-up e se deparasse com estruturas interativas e tridimensionais inventivas e exuberantes, mas feitas de papel.

A opção acabou por se mostrar um recurso inteligente da equipe criativa, pois faz com que o resultado dependa menos do texto do que em 2000, o que é uma vantagem, uma vez que, antes, havia um gigante como Suassuna e agora foi preciso que os roteiristas se virassem sem ele.

O Auto da Compadecida 2 é um exemplar bastante contemporâneo das chamadas “sequências de legado”, que o cinema norte-americano há anos descobriu ser um investimento lucrativo. São retomadas de franquias a combinar personagens, enredos e nostalgia reempacotados em estilo e linguagem que propõem um diálogo tanto com quem assistiu aos anteriores quanto com quem está sendo apresentado a esses universos.

Pense no que fizeram com Os Caça-Fantasmas, Blade Runner, Os Fantasmas se Divertem e Top Gun recentemente. Se pensarmos na série Cidade de Deus – A Luta não Para, da Max, e o anúncio de Bruna Surfistinha 2 para breve nos cinemas, o fenômeno parece ter chegado ao Brasil.

Nada de muitas novidades, então, em O Auto da Compadecida 2. Como a equipe tem frisado nas entrevistas, trata-se mais de uma celebração do que de uma continuação. Chicó e João Grilo seguem os amigos adoráveis de sempre; grande variedade de personagens é inserida no entorno deles; situações se repetem sob novas perspectivas; a Compadecida agora é Taís Araújo (o papel antes coube a Fernanda Montenegro); e o desfecho deixa todos mais ou menos no mesmo lugar onde começaram. Mesmo assim, o filme aponta um caminho interessante a ser trilhado pelo cinema comercial brasileiro. •

Publicado na edição n° 1342 de CartaCapital, em 25 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A nostalgia em alta’

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