Cultura

A narrativa da emancipação

‘Sobrevidas’, a primeira obra de Abdulrazak Gurnah editada no Brasil, aborda a colonização alemã na África

Nascido em Zanzibar e ganhador do Nobel em 2021, Gurnah examina a teia de relações entre oprimido e opressor - Imagem: Hugh Fox/The Nobel Prize
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Quando anunciado o Nobel de Literatura em 2021, a justificativa do prêmio para Abdulrazak Gurnah foi a “sua penetração firme e compassiva nos efeitos do colonialismo, e o destino dos refugiados no abismo entre culturas e continentes.” Seu romance mais recente, Sobrevidas, de 2020, e o primeiro dele lançado no Brasil, é, nesse sentido, exemplar. Trata-se de uma narrativa a um só tempo dura e terna, política e romântica, que olha para o passado e pensa o presente.

A colonização da Alemanha na África é um tema pouco explorado pela literatura – geralmente, fala-se de Inglaterra, França, Bélgica –, mas é dela que ­Gurnah tira o substrato para o romance. E o fato de escrever sob o ponto de vista dos africanos traz um ganho que um escritor de fora jamais alcançaria.

Hamza, um dos personagens centrais, faz parte dos Schutztruppe Askaris, soldados africanos alinhados com as tropas coloniais e sem qualquer piedade de seus pares. Ser um voluntário nesse grupo é uma escolha que trará graves consequên­cias para sua vida – entre elas, um ferimento de guerra que selará seu destino.

Nascido em Zanzibar, e radicado na Inglaterra, Gurnah examina, por meio dessa figura, a complexa teia de relações entre oprimido e opressor. O protagonista deseja tornar-se algoz. E essa dualidade, nos mostra o autor, só pode ser superada por meio da tomada de consciência histórica.

SOBREVIDAS.Abdulrazak Gurnah. Tradução: Caetano W. Galindo. (Companhia das Letras, 336 págs., 74,90 reais).

Em outro segmento – que, em alguns momentos, se cruza com aquele centrado em Hamza –, o romance acompanha a vida de um segundo jovem, que também irá para a guerra, e se tornará uma figura fantasmagórica na vida dos demais personagem, sobretudo, de sua irmã menor.

Ao seguir essas pessoas por mais de meio século, o escritor, com uma prosa que transita entre o cru e o lírico, mergulha na existência de personagens cujas vidas foram dilaceradas pela exploração alemã e pela guerra.

Quando pensa em seu passado, nas pessoas que conheceu, no medo que tinha de ser humilhado, fazendo-o perder um amigo e uma mulher que amou, Hamza diz: “A guerra arrancou essa delicadeza de seu coração e lhe mostrou visões atordoantes de brutalidade, que lhe ensinaram humildade. Essas ideias o deixaram melancólico, o que ele achava ser o destino inescapável dos homens”.

A palavra Vergangenheitsbewältigung, em alemão, está relacionada à compreensão do passado como forma de se retrabalhar as feridas. Essa prática, no entanto, não costuma incluir a experiência colonial do país na África.

Sobrevidas, a começar pelo título, é marcado pela ideia do peso da história, que passa como trator sobre os oprimidos, e dá conta de dois temas caros a Gurnah: o colonialismo e o pertencimento. Basicamente, sua bibliografia se divide entre os romances de exílio, como By the Sea, e os africanos, entre os quais estão, além de Sobrevidas, Paradise e Desertion – todos serão lançados pela Companhia das Letras.

Gurnah é o quinto africano a ganhar o Nobel de Literatura. Os outros são o egípcio Naguib Mahfuz, os sul-africanos­ ­­Nadine Gordimer e J.M. Coetzee e o nigeriano Wole Soyinka.

O conjunto de obras desses autores dá a dimensão da força da prosa produzida no continente. Seus textos, que tendem a ser atravessados pelas lutas pela emancipação colonial, questionam a narrativa hegemônica da história e nos lembram de que as atrocidades não aconteceram apenas na Europa. •


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

Em Mosquito (Intrínseca, 608 págs., 69,90 reais), Timothy Winegard, doutor em história pela Universidade de Oxford, mostra como, desde sempre, os insetos impactaram o destino das sociedades. Em tempos de Covid-19, o detalhado relato desperta especial interesse.

Desde 2010, a Boitempo Editorial vem lançando no Brasil a obra do filósofo marxista italiano Domenico Losurdo. A Questão Comunista (216 págs., 59 reais) é o livro sobre o qual autor trabalhava quando morreu, em 2018. A obra foi concluída a partir de originais encontrados pela família.

Em março, a Record lançou a 50ª edição de O Poderoso Chefão (518 págs., 74,90 reais), livro de Mario Puzo publicado em 1969 e transposto para o cinema por Francis Ford Coppola. A partir dos filmes, o Don Corleone de Puzo ganhou, para sempre, a cara de Marlon Brando.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1205 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A narrativa da emancipação”

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