Cultura
A monumental dança com satã
Lançado em 1985, o cultuado romance Sátántangó é, finalmente, publicado no Brasil, em tradução do húngaro para o português
A espera acabou. Finalmente, foi traduzido do húngaro para o português um romance de László Krasznahorkai, um dos maiores nomes da literatura contemporânea. E sua estreia por aqui se dá com aquela que é considerada sua obra máxima: Sátántangó.
Diz-se que “o húngaro é a única língua que o diabo respeita”. Não é, portanto, de se estranhar que Krasznahorkai faça um romance sobre um tango com satã. Na estrutura apocalíptica da narrativa, é como se os personagens se movimentassem, ao ritmo do obscurantismo e do niilismo, com o demônio.
Publicado originalmente em 1985, Sátántangó se passa num pequeno vilarejo, onde a chegada de um forasteiro leva a transformações na vida cotidiana. Esse homem pode ser um profeta, um criminoso ou o diabo em pessoa. Para Krasznahorkai, aparentemente, essas coisas não são tão diferentes assim.
O lugar é marcado pelas disputas entre os moradores. Não existe ali o mínimo senso de coletividade: cada um vive por si, cercado por seus pequenos fracassos. A chuva que parece perpétua não é epifânica, muito menos purificadora. Ela parece, ao contrário, ir afogando aquelas pessoas na desilusão e na falta de esperança.
Embora nunca explicitado, o cenário é claramente a Hungria comunista, onde a agricultura coletiva tinha grande espaço. Mas o ambiente retratado também tem algo de medieval. Os personagens parecem estagnados em um passado distante, à espera de um satã que traga o fim de tudo.
Krasznahorkai é dono de uma escrita desafiante. Mas quem atravessa seus parágrafos, que duram páginas e páginas, entra em contrato com aquilo que a melhor literatura é capaz de oferecer: um mergulho nas contradições humanas e sociais. Acumulando pontos de vista diferentes, Sátántangó é um livro no qual as coisas não aparecem como as conhecemos. O comum torna-se, assim, pouco familiar.
SÁTÁNTANGÓ. László Krasznahorkai. Tradução: Paulo Schiller. Companhia das Letras (232 págs. 89,90 reais)
Seu estilo, que remete a escritores como James Joyce, Thomas Mann e, principalmente, Franz Kafka, é uma tentativa de dar forma literária ao apocalipse. Mas como narrar o fim do mundo, se esse fim carregaria consigo o fim da própria arte? Este é o grande dilema dos escritores que se propõem a lidar com o tema.
Aniquilar o mundo em uma narrativa é exterminar também qualquer expressão humana. Reside aí o paradoxo de quem se aventura por esse terreno: como contar uma história sobre o fim se tudo – e, logo, a narrativa – acabou?
Krasznahorkai reage, neste romance, a um mundo destituído de sentido. O encontro com o diabo pode não ser exatamente a destruição, e a dança com ele pode ser apenas um recomeço ou a compreensão de algo – possivelmente, da experiência humana. “Sabe, a dança é meu fraco…”, diz a Senhora Schmidt, uma personagem central do livro. Não pode a dança da morte se transformar na dança da vida e na indicação de novos caminhos possíveis?
Um crítico húngaro disse que, em Sátántangó, “a grandeza é claramente palpável, mas as pessoas parecem não saber o que fazer com ela”. A escrita de Krasznahorkai impõe mesmo alguma resistência, mas, ultrapassada a barreira inicial dessa linguagem pouco usual, é possível encontrar a originalidade e a força deste romance.
Até este bem-vindo lançamento, Sátántangó era, no Brasil, mais conhecido pela adaptação cinematográfica de 1994. Trata-se de um épico de mais de sete horas, em preto e branco, e longos planos, assinado pelo também húngaro Béla Tarr. É um filme monumental – à altura do livro –, que agora ganha uma experiência complementar. •
VITRINE
Por Ana Paula Sousa

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PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1232 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE NOVEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A monumental dança com satã “
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