Cultura

A máscara da Costa do Marfim

O verdadeiro tesouro da juventude

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Um dia, o Estadão me despachou pra África. Mais precisamente pra Costa do Marfim, um país que tem o Mali e Burkina Faso ao norte, Gana à leste, Libéria e Guiné a oeste e ao sul, o Oceano Atlântico.

Era um tempo em que jornal mandava pra África um repórter pra cobrir eleições presidenciais. Era um tempo em que havia Varig e a Varig fazia um voo diário para Abidjan, a maior cidade do país e que muita gente acha que é a capital, mas não é.

Todo mundo sabia que não haveria surpresa na eleição. Félix Houphouët-Boigny tinha mais de 90% dos votos segundo o Ibope deles lá mas, mesmo assim, o Estadão me mandou num voo que levou seis horas pra atravessar o oceano.

Chegando na Costa do Marfim, fui tratado como um pachá. Acompanhei as eleições passo a passo, despachei minhas matérias via Intelsat e Houphouët-Boigny foi reeleito como previsto.

Mas, como sugeri uma matéria pro suplemento de Turismo, acabei ficando mais seis dias na Costa do Marfim. Os tempos eram outros e o jornalismo também.

Lá, andei por todos os cantos. Fui até Yamoussoukro, a capital, uma cidade meio fantasma, inspirada descaradamente em Brasília, com seus palácios, ruas e avenidas largas e desertas.

Da estrada, lembro-me das plantações de abacaxi a perder de vista, aliás, o melhor abacaxi do mundo, amarelo, na verdade, ananás.

Haviam palmeiras no meio do caminho, um céu azul quase anil, um calor africano e muita gente fina nos botecos que encontrei.

Em Abidjan, as mulheres negras e divinamente maravilhosas, andavam com seu filhos nas costas, embrulhados em panos de todas as cores.

Lá, fui a um show do cantor Alpha Blondy, que nunca mais saiu da minha memória. Fui por acaso.

Vi um cartaz num muro da cidade e quando vi, estava dançando o reggae no meio da multidão enlouquecida com Blondy, considerado o Gilberto Gil da Costa do Marfim.

Acordava todo dia cedo e ia para o mercado de Coccodi, onde tudo acontece. Por volta de onze horas da manhã, as mulheres começavam a instalar suas barracas de comida, seus panelões de caldeiradas de legumes, peixes e galinhas d’Angola, onde se viam umas pimentas vermelhas boiando.

E foi no mercado de Coccodi que eu, praticamente um marciano em meio aqueles negros e negras maravilhosas, encontrei uma mulher que me pareceu meio feiticeira, meio vidente, meio estranha. Sua barraca vendia máscaras e pra cada uma delas, ela tinha uma história.

Ia explicando e apontando. A máscara da fertilidade, a máscara da saúde, do sucesso profissional, a máscara do amor, das aventuras, do progresso.

De repente, ela buscou lá no alto, com um pedaço de bambu, uma máscara que parecia suja de barro, com algumas conchas encravadas.

– É essa que você vai levar para o seu país.

País que ela sabia apenas que existia um tal de Pelé.

Quis saber o preço e ela insistia em não falar em números. Pegou umas folhas do Fraternité Matin, embrulhou e colocou dentro da minha bolsa de pano. Era um tempo em que eu andava sempre com uma bolsa de pano à tiracolo.

– Você vai levar para o Brasil a máscara da eterna juventude. Ela precisa ficar bem à vista, para que você possa vê-la todos os dias.

Levei aquilo a sério e quando voltei pro Brasil, a primeira coisa que fiz foi bater um prego e dependurá-la no meu escritório para que pudesse vê-la sempre que possível.

Nesses anos todos, tive vários escritórios. Um em Higienópolis, um em Pinheiros e nos últimos tempos, um na Lapa. E a máscara sempre lá, ao alcance dos meus olhos.

Não tenho complexo de Peter Pan e faço questão de anunciar meus 66 anos de idade. Mas, não sei porque, nenhum fio de cabelo branco surgiu até hoje na minha cabeça. Cismei que é magia da tal máscara.

Só esse mês, em uma semana, dois motoristas de ônibus não quiseram abrir a porta da frente para eu, idoso, descesse sem pagar. Um perguntou se eu era deficiente e o outro perguntou se eu era militar. Respondi simplesmente que era idoso.

Resolvi contar essa história aqui hoje porque acabo de chegar de uma agência dos Correios, onde a balconista me recebeu com um não, não, não, aqui é só idoso!

Estou pensando seriamente em andar com a máscara na minha mochila e, pra cada um que desconfiar dos meus 66 anos, vou tirar a máscara e contar essa história.

 

 

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