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A louvação do agro

Pesquisadores buscam entender as relações concretas entre o agronegócio e o novo subgênero do universo sertanejo

A louvação do agro
A louvação do agro
Agronejo. Ana Castela, apelidada de Boiadeira, é rainha do estilo. Com Os Menino da Pecuária, a dupla Léo e Raphael alcançou 132 milhões de visualizações no YouTube – Imagem: Daniel Ramalho/AFP e Redes Sociais/Léo & Raphael
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A letra da canção Os Menino da Pecuária, dos paranaenses Léo e Raphael, diz: Não é à toa que o PIB começa com ‘p’ de pecuária. O video­clipe da música, que tem mais de 132 milhões de visualizações no YouTube, foi filmado em uma fazenda de gado, tem ­merchandising de uma picape e, no meio, apresenta, por meio de uma legenda, a seguinte informação: “Em 2020, o campo movimentou mais de 990 bilhões de reais”.

Outras canções de Léo e Raphael têm títulos bem sugestivos do espírito do gênero: Pecuária 2.0, É os Country que Elas Pega, Cidade do Interior e Agro é Top. A dupla é precursora do agronejo, um subgênero assim denominado pelo próprio setor musical sertanejo, que surgiu em 2021.

Seu nascimento coincide com a onda dos “agroinfluencers”. Por sua força e transversalidade, a ligação entre o agronegócio – que, de acordo com o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada do Cepea/Esalq, ligado à Universidade de São Paulo, foi responsável por 23,2% do PIB brasileiro em 2024 – e a indústria musical tem sido objeto de pesquisas acadêmicas.

Um desses trabalhos é Onde Está o Agro no ‘nejo’? Uma Análise da Relação do Agronegócio e a Música Sertaneja no Brasil, do cientista político João Felipe Marques, apresentado durante o 49º Encontro ­Anual da Associação Nacional de Pós-Gradua­ção e Pesquisa em Ciências Sociais, realizado em outubro em Campinas (SP).

Nele, Marques, mestrando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), delimita algumas características do estilo e investiga se há relações diretas entre as gravadoras e empresas do agro.

O amarelo é a soja/ O verde é o pasto/ O azul abençoa o branco/ Das cabeça de gado, diz a letra da canção Hino Agro

Segundo ele, enquanto o sertanejo universitário, subgênero do sertanejo até então dominante, falava sobretudo de relacionamentos e festas, o agronejo se volta ao retrato de uma sociedade forjada a partir da indústria do agro.

Rompe-se, assim, a louvação ao personagem romântico sofredor e festeiro e adentra-se o universo do jovem rico do campo que, ao mesmo tempo que ostenta carros de luxo e os avanços no meio rural, exalta o orgulho de vir da roça.

O agronejo incorpora ritmos como funk, rap, eletrônico e até música latina, dando um ar de atualidade sonora ao sertanejo. Ao mesmo tempo, muitos arranjos usam instrumentos tradicionais interioranos, como a sanfona. Outra característica marcante, de acordo com Marques, é a exaltação da “modernidade” do universo agro e de seu poder econômico.

A partir da percepção dessa recorrência narrativa, Marques decidiu analisar se a indústria do agronegócio tem participação societária formal e direta no agronejo.

Para isso, ele investigou o quadro societário de produtoras que trabalham com nomes-chave do gênero: Luan Pereira, Ana Castela, Chris no Beat, Léo e Raphael e Us Agroboy, composta por Jota Lennon e Gabriel Vittor.

A partir desses nomes, o pesquisador chegou à produtora Agroplay, que tem como sócio Raphael, da dupla com Léo. A empresa, criada inicialmente para empresariar Ana Castela, está vinculada a todos os artistas, exceção feita ao Us Agroboy, que tem uma empresa homônima responsável pelo gerenciamento da carreira da dupla.

Luan Pereira é um dos cantores mais acessados nas plataformas de streaming­ entre todos os sertanejos. Ana Castela tinha, em setembro, três músicas entre as 50 mais ouvidas no ­streaming, de acordo com a Pro-Música Brasil. Apelidada de Boiadeira e considerada a rainha do agronejo, em Hino Agro, ela canta: O amarelo é a soja/ O verde é o pasto/ O azul abençoa o branco/ Das cabeça de gado/ Do mato, eu sou/ Sou boiadeiro.

O DJ e cantor Chris no Beat incorpora a batida da música eletrônica ao subgênero, enquanto o Us Agroboy faz o mesmo com o funk e o rap.

Perfil. Os artistas não são mais filhos de agricultores, como Zezé di Camargo e Luciano, tema de 2 Filhos de Francisco, e sim pessoas egressas da classe média – Imagem: Alisson Demetrio e Globo Filmes/Conspiração Filmes

Desfazendo o senso comum, o resultado da pesquisa mostrou, porém, que não é possível identificar elos proprietários entre os sócios das produtoras ­Agroboy e Agroplay e o agronegócio. O cientista político crê que a relação se dê de maneira mais difusa, por meio de um alinhamento ideológico e de interesses mútuos.

Quem também buscou, mas não encontrou esse vínculo direto foi o pesquisador Caíque Carvalho, que defendeu, em 2023, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), a dissertação de mestrado Da Curtição à Sofrência: A Modernização Agrícola e o Sertanejo Universitário.

Para Carvalho, a relação do sertanejo com a indústria do agronegócio começa a se consolidar no início da década de 1990, com o sertanejo romântico, que teve como grandes ícones as duplas Leandro e Leonardo, Chitãozinho e Xororó e Zezé di Camargo e Luciano.

Nessa época, o sertanejo passa a ganhar espaço com a circulação de suas músicas nas festas agropecuárias patrocinadas pelas empresas atuantes no setor. “Quando um conjunto de artistas faz shows em eventos agropecuários financiados pelo agronegócio, a relação torna-se direta”, diz Carvalho, que prepara, para 2026, o lançamento do livro Sertanejo Universitário, Agronegócio e Indústria Cultural, pela Editora Telha.

Já na virada para os anos 2000, desponta o subgênero sertanejo universitário, com influência mais evidente e pronunciada da música country e do pop. Esse movimento, segundo Carvalho, está diretamente ligado a uma nova economia, que demanda mão de obra e que leva para cidades universitárias do interior jovens que vão cursar faculdades de Zootecnia, Agronomia, Medicina Veterinária e Administração Rural.

O pesquisador acrescenta que há uma mudança de perfil do elenco artístico do meio. Não são mais filhos de pequenos agricultores tentando a carreira artística, como foi o caso de Zezé di Camargo e Luciano, cuja trajetória é retratada no filme 2 Filhos de Francisco (2005), e sim egressos da classe média. Os sertanejos universitários Mateus, da dupla Jorge e Mateus, e Sorocaba, da dupla Fernando e Sorocaba, por exemplo, cursaram Agronomia.

O sertanejo universitário, para Caíque Carvalho, faz uma música moderna e jovial, mas se utiliza de instrumentos que se relacionam com as tradições, como a sanfona. No agronejo, esse vínculo com a tradição rural se aprofunda tanto na letra quanto na melodia. Além disso, diz, “o sertanejo universitário exprimia a potência do agronegócio de forma mais subliminar enquanto o agronejo é como se tirasse a máscara”.

Rompe-se a louvação ao personagem romântico sofredor e adentra-se o universo do jovem rico do campo

Em Agronegócio e Indústria Cultural – Estratégias das Empresas para a Construção da Hegemonia (Expressão Popular, 208 págs., 53 reais), derivado de um mestrado defendido na Universidade Estadual Paulista (Unesp), Ana ­Manuela Chã pontua que, de fato, no agronejo é muito mais evidente a associação com a defesa ideológica do agronegócio.

“O agronejo herda várias coisas do sertanejo universitário, mas quer chegar na juventude urbana”, diz a autora. Ela lembra que pesquisas apontam que os jovens pouco conhecem o agronegócio e esse público é primordial no projeto de “convencimento” sobre a importância do setor para a economia.

A pesquisadora avalia que se viu uma oportunidade para o surgimento do agronejo durante a Presidência de Jair Bolsonaro, que explicitava a defesa do agro. “Essa identificação, por meio da música, do Brasil como o país do agro é um caminho privilegiado para construir essa identidade nacional”, afirma.

Ou seja, o laço entre a música e o agro não se dá por meio de um vínculo formal, mas o vínculo temático e regional cria uma associação simbólica importante. “Isso também serve para melhorar a percepção do setor por parte da sociedade e, em última análise, a vender produtos”, conclui Marques. •

Publicado na edição n° 1386 de CartaCapital, em 05 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A louvação do agro’

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