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A literatura das pequenas coisas

Deborah Levy, crescida sob o Apartheid, parte de acontecimentos banais para tratar de temas duros como colonialismo e racismo

A literatura das pequenas coisas
A literatura das pequenas coisas
A autora sul-africana desenvolve um projeto estético chamado autobiografia viva – Imagem: Sheila Burnett
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Acontecimentos banais, como andar de bicicleta, ganham ares de excentricidade nas mãos de Deborah Levy. As compras derrubadas no chão, a obra inacabada no seu prédio e a obsessão da madrinha por parasitas hermafroditas servem de matéria-prima para a construção da chamada autobiografia viva, projeto literário da autora sul-africana que tem sua trilogia publicada em conjunto no Brasil.

Lidos na ordem, Coisas Que Não Quero Saber, O Custo de Vida e Bens Imobiliários formam um conjunto coeso, cujo ápice é o terceiro volume. Deborah, branca e judia, cresceu sob o Apartheid. Seu pai foi preso por fazer oposição ao regime e, ao ganhar a liberdade, exilou-se com a família na Inglaterra.

Ao narrar a si mesma, a escritora passa por questões inquietantes, como colonialismo, racismo, feminismo e capitalismo – sua fonte de renda é, afinal de contas, a escrita. Dos tempos de Apartheid, ela recorda as placas na praia com dizeres como “área de banho reservada para uso exclusivo dos membros da raça branca”. Das férias passadas na Espanha, lembra a conversa com um chinês que, além da língua nativa, falava espanhol, francês e inglês. Em dado momento, ele pergunta: “Mas por que vocês, ingleses, não falam outra língua?”

O interesse no ra­cis­mo e no co­lo­nialismo é o que mais a diferencia de outra escritora célebre pela narração das memórias, a francesa Annie Ernaux. A ganhadora do último Nobel é, inclusive, citada por Levy como uma de suas leituras prazerosas. Outra é a italiana Elena Ferrante.

A estadunidense Joan Didion não é citada, mas parece influenciar suas descrições de tipos humanos. Quando Deborah Levy caracteriza as mulheres “felizinhas reclaminhas” e as “ai-meu-deus”, seu tom lembra o de Joan ao citar as mulheres destinadas “a dar à luz uma Kimberly ou uma Sherry ou uma Debbi” no ensaio que abre Rastejando até Belém (Todavia).

Outra característica marcante de sua obra é a maestria com que maneja passado e presente. Em Bens Imobiliários, ela expõe sua busca por uma personagem feminina “gostável” para um roteiro de cinema que estava desenvolvendo. Deborah precisa fazer várias incursões ao passado para chegar à conclusão de que a personagem que procurava era, na verdade, ela mesma. •

Publicado na edição n° 1255 de CartaCapital, em 19 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A literatura das pequenas coisas’

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