Cultura
A lenta volta do público
Quando a pandemia fechou tudo, as pessoas manifestaram o desejo de retomar as atividades culturais ao vivo. Mas, desde então, o online se impôs
Impressões são impressões. Dados são dados. Embora todos saibamos disso, o cotejamento das percepções com evidências é, não raro, prejudicado pelas certezas preestabelecidas e pela falta de indicadores confiáveis.
No caso da cultura, especificamente, a transformação do ministério em uma secretaria subordinada ao Ministério do Turismo, em 2019, e a desarticulação do governo federal com estados e municípios tornaram ainda mais escassas a sistematização de dados e a organização de políticas de enfrentamento dos efeitos da pandemia sobre o setor.
A pesquisa Hábitos Culturais III, realizada pelo Datafolha em conjunto com o Itaú Cultural, funciona, nesse cenário, como uma bússola que nos ajuda a navegar pelo ecossistema cultural – que, obviamente, inclui os criadores, os produtores e os equipamentos, mas não pode prescindir do público.
Fonte: Itaú Cultural e Datafolha
E o que 62% das pessoas ouvidas disseram é que, do início da pandemia para cá, diminuíram a frequência em atividades de cultura e lazer. Apenas 26% dos entrevistados declararam ter retomado o ritmo que tinham antes de março de 2020. A pesquisa ouviu, entre junho e julho, 2.240 pessoas – em uma amostra estratificada, representativa da população brasileira.
O trabalho dá sequência a outros dois levantamentos, feitos em setembro de 2020 e junho de 2021. O primeiro apontou o quanto a cultura se tinha feito presente no cotidiano do isolamento social. A pesquisa Hábitos Culturais II, embora mostrasse um crescimento de 5% no número de pessoas que acessavam a internet diariamente – de 71% para 76% –, capturava um forte desejo de retorno ao presencial. Naquele momento, muitos cinemas, teatros e casas de show estavam reabertos, mas ainda funcionavam com restrições.
O que a nova pesquisa, divulgada na semana passada, revela é que a manifestação de desejo não tem se concretizado em ações. A reabertura dos espaços, a retomada da programação e a possibilidade de estar em ambientes fechados sem máscara pouco alteraram os hábitos adquiridos a partir de 2020.
Fonte: Itaú Cultural e Datafolha
As atividades mais praticadas continuam a ser, como em 2020 e 2021, aquelas online: ouvir música, assistir filmes e séries, ouvir podcast (a atividade que mais cresceu) e jogar games. Na comparação entre as respostas sobre os tempos pré-pandêmicos e os atuais, o hábito que mais se perdeu foi o de ir ao cinema (ver quadros à esq.).
Em 2021, 59% declararam ter ido ao cinema antes da pandemia. Agora, apenas 26% declaram ter ido ao cinema nos últimos 12 meses. As respostas vão ao encontro dos números sobre o mercado cinematográfico disponibilizados pela Agência Nacional do Cinema (Ancine).
Enquanto, em 2019, o circuito exibidor brasileiro vendeu 176 milhões de ingressos, em 2021 esse número foi de 50,6 milhões. No caso dos filmes brasileiros, a queda foi ainda mais acentuada. As produções locais tiveram uma participação de mercado de 1,4% – ante uma média, na última década, de 13%. No primeiro semestre de 2022, de acordo com o site Filme B, o mercado deu sinais de recuperação e o cinema brasileiro também – alcançando um market share de 6,4%.
Fonte: Itaú Cultural e Datafolha
É fato que o encurtamento das janelas de exibição – ou seja, do tempo entre a estreias nas salas e a chegada ao streaming – e a popularização das plataformas aceleraram a adesão a uma nova forma de consumo audiovisual. Mas não se trata apenas disso.
As cadeiras mais vazias, afinal de contas, estendem-se paras os shows, as peças teatrais e a programação infantil – e, nesse caso, não há concorrência direta de Netflix ou Disney+. Dentre as pessoas sondadas pela pesquisa, 80% disseram ter ouvido música online no último ano. Apenas 18% foram ver uma peça de teatro ou um show ao vivo.
Também registraram queda, em relação ao período pré-pandêmico, os espetáculos infantis (de 23% para 18%), as aulas e oficinas de arte (de 21% para 10%) e a visitação a exposições e museus (de 11% para 8%). Mais contundente ainda é o dado sobre leitura: 11% foram a bibliotecas no último ano ante 41% que declararam ter ido a esses espaços antes de 2020.
Curiosamente, porém, no caso de shows musicais, por exemplo, 72% dos entrevistados disseram que, tendo a opção entre o online e o presencial, dariam preferência à experiência presencial. E a atividade citada como aquela da qual as pessoas mais sentem saudade é o cinema.
A flexibilidade e a comodidade são as principais razões para a escolha pelo ambiente virtual
Essa intenção e esse sentimento tornam inevitáveis as especulações em torno das razões para o comportamento que a pesquisa captura tão bem. A comodidade e a flexibilidade de horário são apontadas como as principais razões de escolha pelos eventos online – com 27% das respostas. Os receios ligados à saúde foram citados por 12% dos entrevistados.
O consumo cultural online, além de tudo, permite o acesso para muitos que, distantes dos grandes centros, tinham ofertas muito limitadas. Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, diz que a instituição recebe mensagens de gente de vários lugares do Brasil com pedidos para que o virtual não deixe de ser disponibilizado.
“O desafio é a gente tornar também a experiência do virtual transformadora”, diz Saron. “Se, durante a pandemia, as pessoas tinham tolerância maior para uma falha de som, uma falha técnica, hoje o público busca experiências mais qualificadas.”
Pós-Covid. O hábito que mais se perdeu foi o de ir ao cinema (Marighella, acima, foi o filme brasileiro mais visto em 2021). As bibliotecas também ficaram esvaziadas – Imagem: Secretaria da Educação/GOVSP e 02 Filmes/Globo Filmes
Ao mesmo tempo que o virtual significa, em muitos casos, a democratização do acesso e que sua expansão é apenas um espelho da nossa vida entre telas, não se pode desconsiderar o lado negativo dessa migração abrupta. Por que o retorno do público tem se dado de forma tão lenta?
Em primeiro lugar, a pesquisa não está descolada do todo do País, marcado neste momento pela crise econômica e pela falta de uma política nacional de cultura. Durante a apresentação da pesquisa para jornalistas, Saron chamou atenção para o fato de que, no caso das mulheres, o índice de diminuição da frequência a atividades culturais é ainda maior, de 67%.
“Com as escolas fechadas, as mulheres foram as que mais tiveram de ficar em casa. A ausência da escola pública nos lares brasileiros é uma das hipóteses que levanto para explicar esse dado relativo às mulheres”, afirmou. “Ter mais trabalho com carteira assinada te permite obter mais tempo livre. Quando não tem trabalho, você faz mais bicos e tem menos tempo de lazer.”
Fonte: Itaú Cultural e DataFolha
Outro dado que contribui para um entendimento mais aprofundado a respeito do consumo é aquele sobre o gasto efetivo das pessoas com cultura. Os brasileiros despendem, em média, 178 reais mensais com atividades culturais presenciais – e metade da população não gasta nada (ver quadro na pág. ao lado). E essa despesa inexiste nas classes D e E.
Chama, por fim, atenção o fato de a cultura ser a terceira atividade entendida pelos entrevistados como benéfica para o bem-estar geral (ver quadro à esq.).
Fica como nota de esperança o registro de que a maioria das pessoas diz ainda querer, sim, ir ao cinema, a shows, a teatros e ler livros. Embora esse distanciamento entre desejo e prática possa ser minorado pelas políticas públicas, ele também precisa ser enfrentado por aqueles que, em seu dia a dia, criam e produzem cultura. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1224 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A lenta volta do público”
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