Cultura

assine e leia

A invisibilidade como sina

Em ano de Brasil no Oscar, o evento refaz a pergunta histórica: como levar os filmes a serem assistidos?

A invisibilidade como sina
A invisibilidade como sina
Tela na praça pública. Criada há 28 anos, a Mostra de Cinema de Tiradentes tem o objetivo de servir de vitrine para a produção brasileira de perfil mais autoral – Imagem: Leo Lara/Universo Produção
Apoie Siga-nos no

No Brasil, se fazem muitos filmes. A Mostra de Cinema de Tiradentes, criada há 28 anos para servir de vitrine para a produção nacional contemporânea, exibiu, na edição de 2025, 43 longas-metragens, um média e 96 curtas vindos de 21 estados. Ao todo, 191 longas e 1.039 curtas se inscreveram. Dentre os selecionados, havia documentário político, faroeste goiano, terror capixaba, romance gay vivido no Centro de São Paulo, fantasias psicodélicas, dramas espirituais e muito mais.

A mostra, que aconteceu entre 24 de janeiro e 2 de fevereiro na agradável cidade mineira, teve um clima festivo. Primeiro, porque muitos editais de fomento foram retomados ou lançados no País nos últimos dois anos – no caso dos curtas, o empurrão veio, sobretudo, da Lei Paulo Gustavo. Depois, porque o evento começou na semana seguinte ao anúncio das três indicações de Ainda Estou Aqui ao Oscar.

É, no entanto, o próprio coordenador da curadoria de longas, Francis Vogner, quem faz ressalvas ao otimismo. Ele lembra que o filme dirigido por Walter Salles foi feito sem recursos públicos e representa um modelo – baseado em coprodução internacional – que não faz sentido para a grande maioria dos realizadores do País.

Joelma Gonzaga, secretária de Audiovisual do Ministério da Cultura, por sua vez, reivindica que as conquistas do filme são também fruto do arcabouço legal e da formação de profissionais possibilitados pelas políticas públicas. A produtora francesa do filme, por exemplo, lançou mão de um acordo de coprodução assinado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine).

O inegável é que, enquanto Ainda Estou Aqui bate os 4 milhões de espectadores, a vasta maioria da produção exibida em Tiradentes, que tem exibições numa tenda e numa praça, se debate com a seguinte pergunta: embora muitos filmes sejam feitos, quantos são de fato vistos?

“Alguns filmes que passam pela mostra saem daqui para não ser mais exibidos em lugar nenhum. Vão ficar no HD do realizador ou, pior, são perdidos para sempre”, disse Vogner, em um dos debates do evento. “A questão da distribuição é um constrangimento histórico para o cinema brasileiro.”

Em outra mesa, Joelma Gonzaga ressaltou que a regulação dos serviços de streaming é prioridade do Ministério da Cultura para, justamente, dentre outras coisas, garantir a difusão da produção nacional. “Precisamos ter estratégias de enfrentamento dessas grandes produções que ocupam nossas telas, muitas vezes tirando o espaço das produções locais. Por isso, a importância da cota de tela, de políticas para garantir a presença de conteúdo brasileiro na TV a cabo e nos streamings”, reforçaria ela depois, em entrevista a CartaCapital.

Para Raquel Hallak, criadora da Mostra, o ponto focal do problema da distribuição está na organização dos instrumentos de fomento da Ancine: “O plano de investimento anual do Fundo Setorial do Audiovisual não contempla todo o ecossistema do setor: criação, formação, distribuição, exibição, memória preservação. O financiamento destinado ao fomento é infinitamente maior que o para distribuição, então, realmente, os filmes não chegam.”

“Alguns filmes saem daqui para ficar no HD do realizador”, diz Francis Vogner, um dos curadores da mostra mineira

Daniel Queiroz, da Embaúba Filmes, distribuidora de filmes como Marte Um, avalia que o problema vai além do financiamento à distribuição. Ele prefere falar numa “cadeia de circulação” que envolve mostras, festivais, cinemas, cineclubes e venda para a televisão e plataformas.

Queiroz destaca a importância da formação de público. “Precisamos pensar formas de fazer as pessoas se interessarem mais por um cinema mais plural. Grande parte da população é condicionada a não se abrir para um leque mais amplo de produções”, diz Queiroz. “Não adianta colocar filmes brasileiros nas salas sem investir em torná-los acessíveis e interessantes para a população.”

Queiroz defende que o cinema brasileiro deveria ser exibido e discutido em escolas públicas, o que também serviria como ferramenta de letramento midiático. A exibição de filmes nacionais nas escolas é, inclusive, prevista pela Lei 13.006/2014, que até hoje não foi regulamentada. O governo diz estar, neste momento, trabalhando para que isso aconteça.

O baixo número de salas de cinema por habitante no País também não pode ser desconsiderado quando se fala em acesso. Em Teresina, capital de um dos estados que não tiveram nenhum filme inscrito em Tiradentes, o jornalista Rivanildo Feitosa assumiu a empreitada de organizar uma mostra para a cidade, que também sedia a Piranhão, voltada para realizadores do Piauí e do Maranhão.

Ainda embrionário, o evento terá a segunda edição em 2025, após um primeiro ano possibilitado por conexões e aprendizados feitos nas oficinas da Mostra de Tiradentes. “A cidade já teve outras tentativas de realizar eventos parecidos, mas nenhuma conseguiu durar por tempo suficiente, cumprindo esse papel de formação de público”, diz ele.

Em meio ao enfrentamento da questão do acesso – que é histórica, mas ganhou novos contornos após a popularização do streaming de vídeo –, a Mostra de Tiradentes segue fazendo um importante trabalho não apenas de encontrar e reconhecer filmes interessantes em meio à vasta produção nacional brasileira, mas também ao reunir importantes debates sobre o setor, no Fórum.

Com sorte, filmes como o goiano Oeste Outra Vez, de Erico Rassi, o pernambucano A Vida Secreta de Meus Três Homens, de Letícia Simões, e o capixaba Prédio Vazio, de Rodrigo Aragão, poderão chegar a um público mais amplo do que aquele que os aplaudiu em Tiradentes. Os filmes existem. O público existe. Resta garantir que se encontrem mais. •


*O jornalista viajou a convite da Mostra de Cinema de Tiradentes.

Publicado na edição n° 1348 de CartaCapital, em 12 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A invisibilidade como sina’

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo